Confira abaixo nota técnica da 3ª Procuradoria de Contas com o resumo da peça apresentada pelo MPC. A íntegra da representação e uma apresentação com o histórico dos fatos estão disponíveis em links no final do texto
O Ministério Público de Contas (MPC) protocolou Representação, no dia 27 de setembro, na qual aponta formação de um cartel[1] responsável por fraudar o processo licitatório da concessão do Sistema Rodovia do Sol e articular a transferência irregular do direito de administrar e explorar a concessão, além de construir obras com qualidade inferior à contratada pelo Estado do Espírito Santo – financiadas com recursos públicos (BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – e Bandes – Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo), oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do Fundo de Participação PIS/Pasep, e custeadas pelos usuários do sistema -, e pede a adoção de medida cautelar para determinar, entre outras providências, o afastamento imediato do referido cartel do controle da concessão do Sistema Rodovia do Sol, a intervenção do governo do Estado na concessão e a suspensão imediata da cobrança de tarifas nas duas praças de pedágio (Terceira Ponte e Praia do Sol).
Com fundamento em robusto acervo documental produzido a partir dos trabalhos realizados pelos auditores de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE-ES), bem como pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Rodosol de 2004[2], o aprofundamento das investigações pelo MPC permitiu identificar um projeto de poder envolvendo a participação articulada de agentes públicos e privados – qualificado pelo Relatório da CPI como “‘conluios abjetos’ e ‘ação entre amigos’ para sob os auspícios da atuação ilegítima do Estado, obterem ganhos exorbitantes e enriquecimento ilícito com a aparência de legalidade” -, engendrado por um Consórcio Local formado pelas empresas dos grupos Coimex (liderado por Octacílio José Coser), Tervap Pitanga (liderado por Fernando Aboudib Camargo), A. Madeira (liderado por Américo Dessaune Madeira) e Urbesa/Arariboia (liderado por Wilmar dos Santos Barroso, já falecido).
Consta no Relatório Final da CPI da Rodosol de 2004, entre outras relevantes informações, que os líderes empresariais Octacílio José Coser (grupo Coimex) e Fernando Aboudib Camargo (grupo Tervap Pitanga), nomeados pelo governador Vitor Buaiz como membros do Conselho de Reforma do Estado, tiveram acesso a informações privilegiadas que lhes permitiu “adquirir” do grupo Odebrecht o direito de explorar o pedágio da Terceira Ponte por meio da Operação de Rodovias Ltda. (ORL), empresa esta que, menos de três meses da sua aquisição pelos referidos grupos econômicos locais, seria beneficiada com uma indenização de R$ 11,5 milhões decorrente da encampação irregular da concessão da Terceira Ponte mediante decreto expedido pelo governador Vitor Buaiz sem a necessária autorização da Assembleia Legislativa.
A denúncia do MPC aponta que, para consumar a maior fraude à lei de licitações já perpetrada no Estado do Espírito Santo, os grupos econômicos integrantes do referido cartel, denominados conjuntamente na Representação como Consórcio Local (Coimex, Tervap Pitanga, A. Madeira e Urbesa/Arariboia), contaram com a imprescindível colaboração do grupo Banco Rural (liderado por Sabino Corrêa Rabello, já falecido), também alvo das investigações, por meio das seguintes empresas:
1 – Servix Engenharia S.A. (núcleo de engenharia do grupo Banco Rural): empresa aliciada para disputar e vencer uma licitação de “cartas marcadas” para, logo em seguida, transferir irregularmente a concessão para o mencionado cartel, partilhando com este a construção de obras com qualidade inferior à contratada de modo a maximizar ilegalmente seus lucros.
A licitante vencedora Servix Engenharia S.A. atuou como “empresa laranja” do Consórcio Local, na acepção de pessoa interposta visando à ocultação dos reais sujeitos titulares da relação jurídica.
A fraude na concessão do Sistema Rodosol, com vistas a sua transferência, passou a ser executada imediatamente no dia seguinte à celebração do contrato, assinado em 21 de dezembro de 1998. No dia 22 de dezembro de 1998, a licitante vencedora Servix Engenharia S.A. transferiu 67% do total das ações da Rodosol para o Consórcio Local, mediante cessão das ações para as empresas dos grupos A. Madeira (por intermédio da Dudalto Veículos e Peças Ltda., empresa do mesmo grupo) e Urbesa/Arariboia (por meio da Urbesa Administração e Participações Ltda.), passando os grupos à condição mediata de acionistas majoritários da Concessionária Rodosol.
A participação estratégica dos grupos A. Madeira e Urbesa/Arariboia se deu na condição de “hospedeiros temporários” das ações que seriam posteriormente cedidas aos grupos Coimex e Tervap, “indicando que a repartição do controle societário da SPE Concessionária Rodovia do Sol S.A. entre as empresas que integram de forma permanente o Consórcio Local já se encontrava definida no dia seguinte à celebração do contrato de concessão, ou melhor, antes mesmo da assinatura do contrato, porquanto negociações dessa natureza não são urdidas de um dia para o outro”.
Esse fato marca o início da gradual infiltração/usurpação do Consórcio Local, com vistas à retomada do controle da Rodosol[3]. A Servix deixou, definitivamente, em 2001 o quadro de acionistas da Rodosol, empresa por ela criada para, em seu nome e sob sua exclusiva responsabilidade, explorar a concessão do sistema por 25 anos (1998/2023), e encerrou suas atividades no Espírito Santo em 2005 (a transferência do controle administrativo da Rodosol para o Consórcio Local ocorrera ainda em 1999, ou seja, decorrido menos de um ano da celebração do contrato de concessão, com vigência de 21/12/1998 a 20/12/2023);
2 – Banco Rural S.A. (núcleo financeiro do grupo Banco Rural): instituição financeira apontada como responsável por ter emitido cheque administrativo no valor de 11,5 milhões de reais em favor da empresa Operação de Rodovias Ltda. (ORL), operadora da concessão da Terceira Ponte e pertencente aos grupos Coimex e Tervap. O referido pagamento, realizado pela própria Rodosol e não pela licitante vencedora Servix Engenharia S.A., como previa o edital de licitação, representou uma vantagem indevida que fez parte do processo de fraude à licitação engendrado e executado pelo Consórcio Local;
3 – Banco Rural de Investimentos S.A. (núcleo de investimentos e participações do grupo Banco Rural): tornou-se acionista da Rodosol como forma de retribuição financeira pelo empréstimo concedido ao Consórcio Local por meio do Banco Rural S.A., participando, desse modo, da mencionada fraude à licitação. O Banco Rural de Investimentos S.A. passou exatos quatro anos (28/12/2001 a 27/12/2005) como o maior acionista isolado da Rodosol, auferindo, durante esse período, os rendimentos provenientes da exploração da concessão.
A peça do Parquet de Contas conta em detalhes os 43 anos de história da Terceira Ponte (1973 a 2016) e de suas duas concessões, demonstrando como o Consórcio Local, liderado pelos grupos Coimex e Tervap, “adquiriu” irregularmente em 1996 a concessão da Terceira Ponte do grupo Odebrecht e se perpetuou como explorador vitalício das concessões rodoviárias estaduais sem nunca ter participado de licitação, contando sempre com a conivência obsequiosa e oportuna de agentes públicos e utilizando “empresas de fachada” (ORL na concessão da Terceira Ponte e Rodosol na concessão do Sistema Rodovia do Sol) como instrumentos de blindagem contra os riscos e responsabilidades civis, criminais, administrativas e políticas decorrentes de suas ilícitas explorações:
De alguma forma que não alcançamos, não se compreende como o poder concedente – Poder Executivo do Estado do Espírito Santo -, permitiu que a Concessão do Sistema Rodosol – coisa pública – fosse patrimonializada e tratada como um negócio privado intangível e sagrado do usurpador Consórcio Local (grupos Coimex, Tervap, A. Madeira e Urbesa) – decorrente de uma “ação entre amigos”, como bem ilustrou o então deputado César Colnago, relator da CPI da Rodosol de 2004 – espécie de título de crédito ao portador, institucionalizando o mercado de venda de concessões de serviços públicos no Estado do Espírito Santo, e desprezando, com insensível desrespeito, as leis, a consciência moral, a função social da empesa, a livre concorrência, o respeito ao consumidor, enfim, todos os valores básicos sobre os quais se funda qualquer sociedade digna e justa e devidamente consagrados pela Constituição; e expondo, desta forma, uma massa de dois milhões de cidadãos – usuários consumidores indefesos que transitam pela Região Metropolitana da Grande Vitória -, à avidez predatória do usurpador Consórcio Local (impérios econômicos erguidos com recursos que pertencem à sociedade capixaba, e paradoxalmente propagandistas do Estado mínimo, mesmo tendo a sua sobrevivência custeada por este mesmo Estado), conferindo-lhe, ilicitamente, riqueza aos seus integrantes pessoas físicas e empresas, as quais desenvolviam atividades econômicas completamente desconectadas do objeto da Concorrência Pública nº 1/1998, (…). Simplesmente nos escapa a compreensão.
Registre-se que a Construtora Norberto Odebrecht fora contratada sem licitação para construir 90% do total das obras da Terceira Ponte, tendo exigido do Governo do Estado o direito de explorar o lucrativo pedágio da Terceira Ponte como forma de “se sentir segura” quanto ao pagamento, por parte do Estado, da dívida resultante da construção da ponte.
Já no preâmbulo da Representação, parte que apresenta um resumo da peça do MPC, destaca-se, entre outros pontos, a “nefasta simbiose entre agentes públicos e privados” historicamente em vigor no Estado do Espírito Santo:
Convém, ainda, neste momento inicial, evidenciarmos a insólita participação, nesta cadeia de eventos, de pessoas de elevado capital político e econômico, e que, historicamente – colocando seus serviços à disposição de distintos governadores deste Estado -, permaneceram como titulares de “cadeiras cativas” em órgãos e entidades públicas estratégicas para os interesses privados de grandes grupos econômicos, reforçando a inconcebível hipótese de que, atendendo aos inconfessáveis pedidos confidenciados por diletos grupos empresariais, o Governo do Estado esteja nomeando para ocupar cargos estratégicos na Administração Pública – inclusive em órgãos de fiscalização – pessoas veladamente indicadas pelos próprios grupos que possuem interesses econômicos dependentes da atuação comissiva ou omissiva do Estado, seja na construção de obras, fornecimento de produtos e serviços, fiscalização de concessões, defesa do meio ambiente, concessão de benefícios fiscais e creditícios etc.
Neste cenário de nefasta simbiose entre agentes públicos e privados – relação parasitária de grandes empresários locais aliados aos principais agentes estatais, advinda de uma política de conciliação de interesses entre as oligarquias (com vista à dominação econômica) e o Estado (objetivando a dominação política), feita de costas e a custas do povo – destaca-se a participação de dois personagens decisivos, (…), depositários de valiosos conhecimentos acerca desta intrincada engenharia de poder:
Jorge Hélio Leal (falecido); e João Luiz de Menezes Tovar.
Segundo o MPC, essa nefasta simbiose pode ser exemplificada por meio da não execução da “Conservação Especial”[4], serviço que, conquanto jamais tenha sido prestado pela concessionária desde o início do contrato de concessão, foi irregularmente majorado de R$ 35,6 milhões para R$ 40,8 milhões pelo Governo do Estado em 2005, atitude considerada como um “descalabro” pelo Ministério Público Estadual; bem como pelo recebimento das obras defeituosas da Rodovia do Sol[5] – partilhadas pelos Consórcios Construtor[6] e Executor[7] Rodovia do Sol – , cujo pavimento permitiu-se ser construído com metade da espessura prevista no contrato, consoante trecho extraído do Relatório de Auditoria RA-E 10/2014 do TCE-ES:
Quanto ao dimensionamento do pavimento, a avaliação apresentada (…), mostra que na duplicação da ES-060, trecho entre a interseção com a Rodovia Darly Santos e Setiba, considerando o estudo de tráfego realizado pela licitante vencedora da Concorrência para Concessão do Sistema Rodovia do Sol, apresentado em sua Proposta Comercial, (…), a indicação técnica correta, para atender aos critérios de qualidade impostos pelo Contrato e remunerados pelos usuários, seria projetar uma camada de revestimento em concreto betuminoso com 10 cm (dez centímetros) de espessura. Todavia, (…), verifica-se a indicação da espessura de 5 cm (cinco centímetros) nos eixos principais, portanto, a metade dos 10 cm (dez centímetros) necessários para atender aos critérios de qualidade impostos pelo Contrato e remunerados pelos usuários. Ou seja, já no projeto desse trecho da rodovia, a Concessionária não buscou entregar um produto com qualidade equivalente à contratada pela Administração e remunerada pelos usuários. (grifou-se) (Relatório de Auditoria RA-E 10/2014, fl. 10485, 10486 e 10515 do Processo TC 5591/2013).
No intuito de desvendar “Quem é a mãe da Rodosol?”, questionamento formulado nos moldes do artigo intitulado “Quem é a mãe da Samarco?”, de autoria do jurista Nelson Rosenvald, o MPC desnovelou a complexa estrutura empresarial de exploração – e de blindagem – utilizada pelo Consórcio Local para controlar a concessão do Sistema Rodovia do Sol, chegando as 21 pessoas – detalhadas individualmente na Representação – que, atualmente, por meio de oito empresas interpostas, detêm 100% das ações da sociedade anônima de capital fechado Concessionária Rodovia do Sol S.A., considerada pelo MPC como “empresa de fachada com data de validade” – no sentido de empresa constituída com o propósito específico de dar aparência de legalidade à exploração econômica, enquanto perdurar esta concessão de serviço público –, auferindo os lucros exorbitantes e ilegais constatados pelos auditores do TCE-ES.
O MPC destaca, ainda, as enormes dificuldades “de se cruzar o abismo e fiscalizar” a concessão explorada pelo Consórcio Local, explanando detalhadamente as razões que permitiram aos grupos Coimex, Tervap Pitanga, A. Madeira e Urbesa/Arariboia sobreviverem incólumes a três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) instauradas pela Assembleia Legislativa (Ales) (1994, 1995 e 2004), duas comissões especiais também criadas pela Ales (1993 e 1997), duas auditorias do Governo do Estado (1995 e 2003), duas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Estadual (1998 e 2016), além de auditorias ordinárias e extraordinárias realizadas pelo TCE-ES (1997, 2009 e 2013). Ressalta o MPC que “em verdade, (…), não se conclui se o Sistema Rodosol consistiria em uma concessão do Governo do Estado ou se o Governo do Estado é que seria uma concessão do Sistema Rodosol!”. A pressão exercida pelos referidos grupos econômicos junto aos poderes públicos, em face da qual apenas a pressão popular pode oferecer alguma resistência – enquanto não neutralizada ou estrategicamente desencorajada pelos meios ordinários de controle social –, faz-se sentir em todas as ações de fiscalização, conforme destacou o deputado Cesar Colnago no Relatório Final da CPI da Rodosol de 2004:
Infelizmente, todos estes esforços empreendidos na apuração dos fatos frustraram as esperanças da sociedade. E, apesar do empenho de alguns, foram interrompidos por interferências políticas e de outras ordens. A única certeza é a de que, ao final, não resultaram em quaisquer conseqüências práticas almejadas pela sociedade.(grifou-se)
A mesma preocupação foi revelada pelo próprio Tribunal de Contas – por meio de seu presidente, à época, conselheiro Domingos Augusto Taufner, primeiro relator do Processo TC 5591/2013 (Auditoria Sistema Rodosol) -, em ofício encaminhado ao Ministério Público Estadual com o objetivo de instruir o Inquérito Civil MPES 2014.0026.5569-16:
Releva destacar outro ponto importante no controle externo, a conclusão da parte inicial da auditoria do sistema Rodosol, que se efetivou no ano de 2014, fruto de reivindicação contida nas manifestações populares nos meses de junho e julho de 2013. Entretanto, mesmo cessadas estas manifestações, o TCEES continuou firme no propósito de concluir a auditoria. Não apressou a sua realização como alguns queriam e pressionaram, pois isso poderia prejudicar a sua qualidade técnica. Também não a deixou cair no esquecimento, como muitos temiam já que muitas vezes a fiscalização feita pelo poder público somente é concluída quando há uma pressão popular permanente. (grifou-se)
A primeira fase da auditoria foi concluída em abril deste ano, a empresa já apresentou suas justificativas e atualmente encontra-se em fase de análise destas, sendo que o processo ainda não foi julgado. Trata-se de um trabalho muito complexo e que incomoda interesses, e somente um órgão com boa qualidade técnica e com determinação de esclarecer os fatos tem condições de realizar. (grifou-se)
Essa auditoria e outras que estão em andamento, somente se tornaram possíveis devido a essa nova composição deste Tribunal, que a despeito de interesses diversos envolvidos, determinou a realização da auditoria, e muito trabalho ainda está para ser feito, mesmo com limitações que eventualmente podemos ter. Sendo certo que os avanços desta Corte de Contas, podem contribuir em muito com o trabalho desse órgão ministerial. (grifou-se)
Consta da Representação que, além de o Consórcio Local desfrutar do monopólio das obras do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Espírito Santo (DER-ES) (só ao grupo A. Madeira empenhou-se mais de meio bilhão de reais entre 2009 e 2015, enquanto o grupo Tervap Pitanga recebeu três vezes pela realização de um único serviço) e ser beneficiário de expressiva fatia dos incentivos fiscais estaduais (Fundap, etc.), obteve por “via oblíqua” o direito de explorar a concessão do trecho da BR 101 que corta o Estado do Espírito Santo, conforme descrito na Representação do MPC:
Consigna-se igualmente que a Coimex Empreendimentos e Participações Ltda. integra também a joint venture Centauro Participações; juntamente com Rio Novo Locações (Grupo Águia Branca), A. Madeira Indústria e Comércio Ltda., Urbesa Administração e Participações Ltda., Tervap Pitanga Mineração e Pavimentação Ltda., Contek Engenharia e MMF Empreendimentos e Participações.
A Centauro Participações originou-se do grupo Consórcio Capixaba, que concorrera, e perdera para o Consórcio Rodovia da Vitória (EcoRodovias e SBS Engenharia), a disputa pela concessão do trecho da BR 101 que corta o Espírito Santo (475,9 quilômetros), em leilão realizado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em 18 janeiro de 2012.
Posteriormente, o Consórcio Capixaba, inconformado com o resultado da licitação, iniciou uma acirrada disputa judicial, resultando, destarte, na suspensão do certame, impossibilitando a assinatura do contrato, sob o fundamento de que o plano de negócio apresentado pelo consórcio rival – em pelo menos 45 itens – não demonstrava o valor a ser investido nos correspondentes prazos de investimento estipulados.
Após um ano e meio de contenda judicial, no dia 17 de abril de 2013, um dia, portanto, antes da autorização contratual para início da cobrança da tarifa de pedágio pelos usuários consumidores capixabas, que se daria em 18/04/2013, o Consórcio Capixaba adquire, por R$ 20,6 milhões, 27,5% da participação acionária da ECO 101, empresa criada pelo vencedor Consórcio Rodovia da Vitória (EcoRodovias e SBS Engenharia) para administrar a concessão.
Esse insólito enredo, revelador da existência de uma muralha intransponível posta nos exatos limites geográficos do Estado do Espírito Santo, como a marcar o espaço de uma perene dominação econômica – propriedade exclusiva dos integrantes do Consórcio Local (grupos Coimex, Tervap, A. Madeira e Urbesa) – já nos permite conceber o triste vaticínio de que qualquer investimento de médio e grande porte a ser realizado neste Estado, somente se consumará, caso conforme sua vontade, necessariamente, à apreciação, modelagem e suprema deliberação e participação do Consórcio Local, a exemplo da frustrada concessão da BR 262 (rodovia que interliga os estados do Espírito Santo e Minas Gerais), além da concessão, à iniciativa privada, da exploração econômica de trechos da malha viária estadual, já aventada pelo ex-diretor geral do Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do Espírito Santo (DER-ES) Halpher Luiggi.
Aguardemos, portanto.
Ação Penal 300-ES no STJ
A Representação do MPC traz um capítulo especial dedicado ao “Caso Tervap” na Ação Penal 300-ES, em trâmite perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), originada de denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal (MPF) com base nas análises, à época preliminares, do corpo técnico do TCE-ES no processo TC 184/1998. De acordo com o MPF, a empresa Tervap Pitanga Mineração e Pavimentação Ltda. (grupo Tervap Pitanga) atuou como pivô de um esquema de pagamento de propina a conselheiros do TCEES com recursos provenientes do superfaturamento de obras de ginásios poliesportivos construídos com recursos da quota-parte estadual do Salário-Educação, consoante, inclusive, restou reconhecido pelo Relator da Ação Penal 300-ES ministro Mauro Campbell Marques e veiculado pelo setor de comunicação institucional do STJ:
Para o relator, foi demonstrado que Valci Ferreira e outros dois acusados ‘concorreram efetivamente’ para a prática de crime de peculato, no momento em que os recursos pagos à Tervap, sob o pretexto da construção de ginásios foram desviados.
Após a elaboração da Instrução Técnica Conclusiva (ITC) – peça que apresenta a análise final da área técnica –, cujos fatos não integraram a denúncia do Ministério Público Federal, os auditores de controle externo do TCE-ES confirmaram que a empresa Tervap Pitanga Mineração e Pavimentação Ltda. realizou de fato a construção fraudulenta de ginásios poliesportivos superfaturados em cinco municípios capixabas. No entanto, apesar de a empresa Tervap ter sido beneficiada com o superfaturamento das obras por ela construídas, o que representou enriquecimento ilícito desta empresa líder do Consórcio Local, a responsabilidade pelo ressarcimento do dano ao erário, no valor, à época, de 1,7 milhão de reais, foi imputada apenas aos gestores públicos da ocasião: os secretários de Estado da Educação Robson Mendes Neves e Rosângela Maria Luchi Bernardes, bem como os prefeitos Aladir Chierici (Apiacá), Leonides Alves Moreno (Ibatiba), João do Carmo Dias (Brejetuba), Rui Carlos Baromeu Lopes (São Mateus) e Venício A. de Oliveira (São Domingos do Norte). Destes, apenas Robson Mendes Neves foi denunciado pelo MPF.
O MPC sustenta que sucessivos vícios processuais, muitos deles de natureza insanável, impuseram um estranho desfecho ao Processo TC 184/1998 no âmbito do TCE-ES, na medida em que restou forçadamente arquivado até que novas medidas sejam promovidas com vistas ao efetivo ressarcimento dos recursos públicos desviados do Salário-Educação.
Pedidos
Conquanto a Representação TC 5591/2013 não tenha esgotado o tema como inicialmente se vislumbrara, porquanto muitos pontos restaram pendentes de análise devido, dentre outros aspectos, às limitações inerentes ao porte e à complexidade do objeto auditado, avançou-se no esclarecimento de diversas questões importantes […]
Ademais, registra-se – somente a título de exemplo, dentre outros pontos pendentes de análise e que evidenciam o não esgotamento do tema -, que o corte temporal promovido no escopo da auditoria realizada no Processo TC 5591/2013 – limitações inerentes ao porte e à complexidade do objeto auditado – não permitiu a verificação dos indícios de irregularidade atinentes à encampação da concessão da Terceira Ponte por meio de decreto do governador sem lei autorizativa, bem como a aferição honesta do valor de R$ 11.500.000,00 (onze milhões e quinhentos mil reais), pago a título de indenização à empresa Operação de Rodovias Ltda. (ORL), operadora – também irregularmente sem licitação – da concessão da Terceira Ponte até 21 de dezembro de 1998, e adquirida, pelos grupos Coimex e Tervap, das empresas Multitrade S.A. e Construtora Norberto Odebrecht S.A. pelo valor de R$ 13.445.025,00 (treze milhões, quatrocentos e quarenta e cinco mil e vinte e cinco reais).[…]
Destarte, reitera-se, por oportuno, que a Representação TC 5591/2013, apesar de sua magnitude e visibilidade, não põe fim à atividade fiscalizatória do TCEES e dos demais órgãos de controle sobre todo o período de concessão da Terceira Ponte (1984 a 1997) e do Sistema Rodovia do Sol (1998 a 2023), nem confere a chancela genérica e irrestrita de legalidade à concessão em vigor, porquanto um único trabalho não seria capaz de alcançar todos os fatos ocorridos ao longo do conturbado período de delegação, mormente diante das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos órgãos de controle para fiscalizar os atuais exploradores do serviço público. Ao contrário do que se previa, muito ainda precisa ser apurado, razão pela qual a Representação TC 5591/2013 deve ser vista apenas como o marco inicial das investigações.
Neste contexto, trazendo a lume novos pontos de fiscalização, insere-se a presente Representação formulada pelo Ministério Público de Contas, tendo como objeto, dentre outros, sólidos indicativos de irregularidade criminosa na transferência por parte da licitante vencedora da Concorrência Pública 1/1998 do direito de administrar e explorar o Sistema Rodovia do Sol para um Consórcio Local formado por grupos econômicos que sequer participaram do certame delegatório da concessão do referido sistema viário, motivo pelo qual esta novel Representação ministerial possui escopo e objetos distintos do que foram examinados pela equipe multidisciplinar de auditores no Processo TC 5591/2013.
Servindo-se de narrativa não linear e de múltiplas perspectivas de análise gráfica, adotadas como opção metodológica com o objetivo de facilitar a compreensão do contexto histórico necessária à demonstração dos indicativos de irregularidades, o presente trabalho inicia detalhando os fatos – episódios ricos no tocante à ausência de critérios éticos – que tornam imoral, ilegítima, ilegal e inconstitucional a transferência do controle da sociedade de propósitos específicos (SPE) Concessionária Rodovia do Sol S.A., operadora da concessão do Sistema Rodovia do Sol, para o Consórcio Local, para, em seguida, propiciando aos cidadãos – principalmente àqueles que não viveram aqueles tempos – o acesso a um pedaço da história, promover o resgate histórico de eventos ocorridos durante os 25 anos que antecederam a celebração do atual contrato de concessão (1973 a 1998), os quais podem justificar como no Estado do Espírito Santo a manipulação do interesse público, visando à manutenção de privilégios ilegítimos para uma minoria, transformou a prestação de um serviço público essencial em um rentável e lucrativo negócio privado, de caráter familiar e hereditário – qualificado como “ação entre amigos” pelo Relator da CPI da Rodosol de 2004 –, que se enquadra perfeitamente à moldura histórico-sociológica entalhada por Sérgio Buarque de Holanda para descrever a soturna e indisfarçável face patrimonialista do Estado brasileiro.
Desse modo, após registrar que esta nova Representação restou autuada como Processo TC 8336/2016, e devidamente distribuída ao relator do Processo TC 5591/2013, conselheiro Sebastião Carlos Ranna de Macedo, dada a conexão entre as matérias, conquanto distintos os objetos, o MPC pugnou ao Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo a adoção das seguintes medidas a serem determinadas pela própria Corte de Contas ou, conforme a competência, por outras instituições igualmente responsáveis pela tutela do interesse público:
– Intervenção do poder concedente na concessão do Sistema Rodovia do Sol;
– Afastamento imediato dos grupos Coimex, Tervap Pitanga, A. Madeira e Urbesa/Arariboia do controle da concessão;
– Suspensão imediata da cobrança de tarifas nas duas praças de pedágio (Terceira Ponte e Praia do Sol);
– Indisponibilidade de bens de todas as empresas responsáveis direta ou indiretamente pela construção das obras construídas com qualidade inferior à contratada pelo Estado e remunerada pelos usuários consumidores;
– Desconsideração da personalidade jurídica da Concessionária Rodovia do Sol S.A.;
– Quebra do sigilo bancário dos acionistas da Concessionária Rodovia do Sol S.A.;
– Responsabilização das empresas integrantes do Consórcio Construtor e do Consórcio Executor, responsáveis pela construção das obras com qualidade inferior à contratada; e
– Aplicação às pessoas físicas e jurídicas responsáveis da pena de proibição de contratar com o poder público, na qual se inclui a concessão de benefícios fiscais ou creditícios de natureza contratual, subsidiados com recursos públicos.
Além disso, destacou-se que algumas ilicitudes apontadas pela abordagem histórico-jurídica empreendida pelo Parquet de Contas sobre o período de 43 anos de história da Terceira Ponte encontram-se, por certo, alcançadas pela perda da pretensão punitiva do Tribunal de Contas em relação aos seus responsáveis[8] (prescrição), circunstância essa que, por outro lado, não exime o TCE-ES da obrigação de corrigir as situações mantidas em condição irregular até os dias atuais, bem como de promover o ressarcimento integral dos danos suportados pelo erário em razão da sua imprescritibilidade.
[1] “Cartel é um acordo explícito ou implícito entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou quotas de produção, divisão de clientes e de mercados de atuação. […]
- Licitações são um ambiente propício à atuação dos cartéis, que podem agir de várias formas:
- a. Fixação de preços: na qual há um acordo firmado entre concorrentes para aumentar ou fixar preços e impedir que as propostas fiquem abaixo de um “preço-base”.
- b. Direcionamento privado da licitação: em que há a definição antecipada de quem irá vencer determinado certame ou uma série de processos licitatórios bem como as condições nas quais essas licitações serão adjudicadas.
- c. Divisão de mercado: representada pela divisão de um conjunto de licitações entre membros do cartel, que, assim, deixam de concorrer entre si em cada uma delas. Por exemplo, as empresas A, B e C fazem um acordo pelo qual a empresa A apenas participa de licitações na região Nordeste, a empresa B na região Sul e a empresa C na região Sudeste.
- d. Supressão de propostas: modalidade na qual concorrentes que eram esperados na licitação não comparecem ou, comparecendo, retiram a proposta formulada, com intuito de favorecer um determinado licitante, previamente escolhido.
- e. Apresentação de propostas pro forma: caracterizada quando alguns concorrentes formulam propostas com preços muito altos para serem aceitos ou entregam propostas com vícios reconhecidamente desclassificatórios. O objetivo dessa conduta é, em regra, direcionar a licitação para um concorrente em especial.
- f. Rodízio: acordo pelo qual os concorrentes alternam-se entre os vencedores de uma licitação específicas. Por exemplo, as empresas A, B e C combinam que a primeira licitação será vencida pela empresa A, a segunda, pela empresa B, a terceira pela empresa C e assim sucessivamente.
- g. Subcontratação: Na qual concorrentes não participam das licitações ou desistem das suas propostas, a fim de serem subcontratados pelos vencedores. O vencedor, da licitação, a um preço supracompetitivo, divide o(s) sobrepreço(s) com o(s) subcontratado(s).
Em muitos cartéis, mais de uma dessas formas de atuar podem estar presentes. Assim, a prática do “rodízio” pode ser combinada com a divisão de mercado (os concorrentes combinam a alternação dos vencedores em um grupo de licitações, para dar a impressão de efetiva concorrência), e o direcionamento da licitação pode ser implementado pela apresentação de propostas inviáveis e complementado por subcontratação.”
LEITÃO, Antônio Jorge. Obras públicas: artimanhas e conluios. 5.ed. São Paulo: Livraria e editora universitária de Direito. 2014. p. 233 e 234.
[2] A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo (Ales) teve seu Relatório Final publicado no Diário do Poder Legislativo de 07 de junho de 2004, cuja íntegra se encontra disponível em: http://www.al.es.gov.br/appdata/anexos_internet/cpi_rododsol/rel_final_rodosol.pdf.
Além do deputado Cesar Colnago, que atuou na condição de Relator, também integraram a CPI, a deputada Brice Bragato (Presidente), o deputado José Ramos (Vice-Presidente), além dos membros, deputados Robson Vailant e Euclério Sampaio.
[3] A anterior exploração econômica do pedágio junto à Concessão da Terceira Ponte (1989 a 1998) já estava em poder dos grupos econômicos Coimex e Tervap.
[4] Despesa concernente a investimentos da concessionária (Saídas de Caixa) constante de sua Proposta Comercial, e por conseguinte, parâmetro de sua estrutura tarifária que serviu de baliza para sua proposta de “menor tarifa básica de pedágio” (critério de julgamento da licitação) apresentada no valor de R$ 0,94 (novena e quatro centavos de real), e que se sagrou vencedora do certame (Concorrência Pública 1/98).
A Conservação Especial jamais foi executada, representando importante fator de desequilíbrio econômico financeiro do contrato em beneficio da concessionária, potencializando seus lucros em detrimento dos usuários consumidores do Sistema Rodosol.
[5] Irregularidade constatada pela primeira vez em 2004 pela CPI da Rodosol, por meio de perícia técnica realizada “in loco” pelo Instituto de Avaliação e Perícias de Engenharia (IBAPE), e pela segunda vez em 2014, portanto dez anos depois, por perícia técnica também realizada “in loco” pelo Núcleo de Engenharia e Obras Públicas (NEO) do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCEES).
[6] Responsável pelo “gerenciamento e contratação das obras” e pela “prestação dos serviços de manutenção, conservação e outras avenças”.
[7] Responsável pela “integral execução das obras” do Sistema Rodovia do Sol.
[8] Alguns falecidos, inclusive.
Devido à complexidade dos fatos e à extensão do período analisado (43 anos), com o objetivo de lançar luzes sobre as concessões e de simplificar a compreensão dos temas tratados, o MPC anexou à Representação (Doc. 17) uma apresentação contendo uma síntese histórica da construção e das concessões da Terceira Ponte e do Sistema Rodovia do Sol, e suas inúmeras irregularidades, cujo download pode ser realizado por meio do seguinte link: apresentação
Confira a íntegra da Representação do MPC (Processo TC 8336/2016)