MPC argui nulidade no trâmite do recurso de reconsideração da prestação de contas do governador de 2014
Publicação em 4 de julho de 2016

Em parecer-vista emitido nesta segunda-feira (04/07), o Ministério Público de Contas (MPC) arguiu a nulidade parcial do procedimento do recurso de reconsideração interposto em face da prestação de contas anual do governador de 2014. A nulidade decorre da ausência do parecer ministerial e alcança todos os atos posteriores ao momento processual em que a referida peça técnica deveria ter sido encartada aos autos.

A apreciação do Recurso de Reconsideração TC 3842/2016 foi iniciada na sessão plenária realizada no último dia 21/06 sem que o processo houvesse sido enviado previamente ao órgão fiscal da lei para emissão do parecer escrito exigido pelas leis orgânicas do Ministério Público de Contas e do Tribunal de Contas (TCE). Essa exigência legal tem por objetivo assegurar a observância do devido processo legal, impedindo a ocorrência de violação de direitos e a supressão de garantias processuais. Nessa sessão plenária, após o conselheiro relator Sebastião Carlos Ranna de Macedo proferir voto pelo não conhecimento do recurso, o MPC pediu vista dos autos para análise.

O parecer-vista do órgão ministerial apontou ainda a ausência de realização do prévio juízo de admissibilidade pelo relator, providência inicial considerada pela lei orgânica e pelo regimento interno do TCE como condição de validade para o processamento do recurso e sem a qual o feito não poderia tramitar na corte nem ser submetido à apreciação por parte do plenário.

Em relação à proposta de não conhecimento do recurso apresentada pelo conselheiro relator, o MPC esclareceu as razões que lhe permitiram incluir no cômputo do prazo recursal o período de suspensão previsto na Decisão TC 06/2016.

Além da matéria processual, o MPC alertou para a necessidade inadiável de o Tribunal de Contas enfrentar duas importantes questões pendentes de resolução, as quais foram objeto do recurso de reconsideração. São elas:

1) O descumprimento do percentual mínimo constitucional de 25% em despesas com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), decorrente dos procedimentos da Administração Pública estadual de criar receita fictícia para cobrir despesa inexistente do RPPS e de transferir orçamentariamente os recursos destinados à cobertura do déficit financeiro do RPPS, bem como da aplicação do art. 21, §§ 4º e 5º da Resolução TC 238/2012, dispositivos segundo os quais os recursos destinados à cobertura do déficit financeiro do RPPS são considerados como aplicação em MDE, permitindo, em seu conjunto, a subtração indevida anual de mais de meio bilhão de reais de recursos da educação estadual, sujeitando, inclusive, o Estado do Espírito Santo à mais grave sanção que se pode impor a um Estado membro da Federação: a intervenção federal – por meio da Representação Interventiva junto ao Supremo Tribunal Federal, de iniciativa do Procurador-Geral da República, nos moldes do art. 36, inciso III, da Carta Maior, retirando-lhe a autonomia organizacional que caracteriza a estrutura federativa brasileira em face da violação ao princípio constitucional sensível previsto no art. 34, inciso VII, alínea “e”, da Constituição Federal;

2) A atual inobservância dos limites de despesa com pessoal por parte dos Poderes e órgãos estaduais decorrente da aplicação da Decisão TC 006/2001 e da Resolução TC 189/2003, normativos editados por esta Corte de Contas que autorizam todos os Poderes e órgãos estaduais a descumprirem os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), conferindo aparente legalidade à contabilização de parte das despesas com pessoal dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e do próprio Tribunal de Contas dentro do limite de despesa com pessoal do Poder Executivo, transferindo indevidamente parte da responsabilidade fiscal dos demais poderes e órgãos para o Poder Executivo e desconsiderando a repartição dos limites de despesa com pessoal prevista no art. 20, inciso II, da Lei Complementar federal 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), sujeitando o Estado do Espírito Santo à intervenção federal por motivo distinto do anterior e retirando-lhe a autonomia organizacional que caracteriza a estrutura federativa brasileira em face da recusa à execução de lei federal (no caso, a LRF), nos termos do art. 34, inciso VI, da Constituição Federal, bem como à suspensão do recebimento de todos os repasses de verbas federais e estaduais, consoante estabelece o art. 169, § 2º, da Carta da República, uma vez o período de dois anos para adequação aos limites de despesa com pessoal, estabelecidos pela LRF, expirou há mais de uma década, conforme regra de transição contida no art. 70 dessa mesma lei complementar.

De acordo com o MPC, em ambos os casos as gravíssimas irregularidades são escudadas por atos normativos do Tribunal de Contas, os quais foram objeto de incidentes de prejulgado suscitados no recurso de reconsideração.

Conquanto as duas questões apontadas tenham sido alvo de breves considerações durante a apreciação da prestação de contas do governador de 2014, ocasião em que os membros do TCE reconheceram a necessidade de se criar uma regra de transição/período de adequação para corrigir as irregularidades, o órgão ministerial reiterou no parecer-vista que não pactua com a referida proposta, haja vista que qualquer medida de natureza institucional, consubstanciada em lei ou em ato administrativo normativo estadual, concebida no intuito de impedir, frustrar ou retardar o imediato cumprimento tanto do percentual mínimo constitucional de 25% com despesas em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) quanto da repartição dos limites de despesa com pessoal entre os Poderes e órgãos, seja por meio da criação de regras de transição ou de outro expediente de conteúdo semelhante, consistiria em verdadeira afronta ao pacto federativo na medida em que, além de ignorar os esforços realizados pelos demais entes da federação para adimplir com os referidos limites, usurparia a competência legislativa da União, sujeitando, por mais esse motivo, o Estado do Espírito Santo à intervenção federal, sanção prevista no art. 34, inciso VI, e processada nos moldes do art. 36, inciso III, ambos da Constituição Federal.

Em acréscimo, pontuou o Parquet de Contas que a relevância das questões trazidas ao conhecimento do Tribunal já motivaram a mitigação do preenchimento dos requisitos de admissibilidade, a exemplo da Representação TC 5591/2013, processo no qual o juízo de admissibilidade restou excepcionalmente mitigado pelo então conselheiro relator Domingos Augusto Taufner em razão da relevância e da urgência em se fiscalizar a concessão do Sistema Rodovia do Sol.

Acerca desse precedente jurisprudencial, o MPC ressalta sua importância secundária quando comparado às duas gravíssimas violações à Constituição Federal mencionadas, a exemplo da subtração indevida e bilionária dos recursos da educação, a qual, somente entre janeiro de 2009 e maio de 2016, perfaz a quantia de R$ 3.336.277.755,37 (três bilhões, trezentos e trinta e seis milhões, duzentos e setenta e sete mil, setecentos e cinquenta e cinco reais e trinta e sete centavos), recursos ordinários que foram destinados prioritariamente para pagamento de outras despesas dos Poderes e órgãos estaduais em detrimento da melhoria e do desenvolvimento do ensino público capixaba. Sobre essa irregularidade, ressalta o órgão ministerial no parecer-vista:

[…] antes que se levantem vozes contrárias à vinculação constitucional de gasto mínimo com a educação, no percentual de 25% da receita resultante de impostos, reputando-a geradora de ineficiência alocativa e má gestão – carecedora, portanto, de um aperfeiçoamento –, associado ao atual debate acerca da necessidade de ajuste fiscal em face do propalado momento político-econômico, cumpre consignar que não se concebe a desconstrução da proteção de custeio do direito fundamental à educação sem sequer explicitar os grandes pontos frágeis inseridos nas renúncias fiscais, nos créditos subsidiados, na efetiva arrecadação da dívida ativa, na análise da performance dos financiamentos concedidos pelo Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes), no expressivo contingente de servidores temporários e comissionados, na insuficiência dos controles de custos e resultado por desempenho real e não meramente estimado, dentre outros impasses.

Outro ponto que mereceu destaque no parecer-vista refere-se ao prazo regimental de apenas 24 horas para o MPC ter vista dos recursos interpostos na prestação de contas do governador, diferentemente do prazo de duas sessões (15 dias) concedido ao órgão ministerial quando se trata de prestação de contas dos prefeitos. De acordo com o órgão ministerial, a insustentável distinção de tratamento processual existente entre a prestação de contas do chefe do Poder Executivo estadual e as prestações de contas dos chefes dos Poderes Executivos municipais não encontra respaldo legal. O “fato de o recurso de reconsideração em discussão desafiar parecer prévio emitido na prestação de contas do excelentíssimo governador do Estado do Espírito Santo não constitui motivo válido para receber tratamento distinto por parte da fiscalização exercida por este Tribunal, em desprestígio à atuação igualmente fiscalizatória do Ministério Público de Contas”, afirma o órgão fiscal da lei.

Como forma de demonstrar a mencionada diferença de tratamento, a peça ministerial cita o fato de que todos os documentos que compõem os autos da prestação de contas anual do governador de 2015 (Processo TC 3532/2016) tramitam sob sigilo interno no TCE, não sendo permitido acesso por meio do sistema eletrônico do Tribunal (e-TCEES) nem mesmo aos membros do Ministério Público de Contas. Essa restrição impede, por exemplo, que o próprio parecer emitido pelo MPC possa ser consultado pelo Parquet de Contas. Esse tratamento contrasta com o conferido às prestações de contas dos prefeitos, cujo padrão de sigilo (sigilo externo) garante acesso irrestrito a todos os auditores de controle externo e demais servidores da Corte de Contas, conquanto não permita acesso ao cidadão, principal interessado na prestação de contas da pessoa eleita para lhe representar na gestão dos interesses comuns da sociedade. Apenas os processos classificados sob o padrão não sigiloso podem ser consultados por qualquer cidadão.

Sobre a necessidade de se dar máxima transparência ao exercício do controle externo, arremata o MPC:

Considerando que os processos das prestações de contas anuais são formados exclusivamente por documentos públicos e que o art. 3º da Lei federal 12.527/2011, Lei de Acesso à Informação (LAI), preconiza a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção, dentre outras importantes diretrizes, não se vislumbra qualquer motivo de ordem pública que justifique o sigilo imposto à prestação de contas anual do governador de 2015 e às respectivas peças técnicas já elaboradas, como o Relatório Técnico de Análise das Contas do Governador e o Parecer do Ministério Público de Contas, aos quais se deve dar ampla publicidade após a sua produção, e destarte, permitir que decisões sobre assuntos públicos da mais alta relevância e complexidade para a sociedade – como é o caso da apreciação da prestação de contas anual do governador – sejam acompanhadas da necessária análise, debates e eventuais controvérsias suscitadas por todos os agentes públicos participantes do processo decisório desta Corte de Contas.

Conforme entendimento deste órgão ministerial, já esposado na prestação de contas anual do governador de 2014, cumpre ao Tribunal de Contas criar mecanismos para permitir ao cidadão não só o acompanhamento simultâneo das ações de fiscalização exercidas por este órgão de controle externo, mas também de sugerir pontos a serem incluídos na análise da prestação de contas anual dos chefes dos Poderes Executivos estadual e municipais como forma de aproximar o controle institucional, realizado sob o aspecto formal por esta Corte de Contas, do controle social efetuado ainda de forma muito tímida por quem efetivamente suporta os nefastos efeitos materiais decorrentes de eventual má gestão pública, uma vez que, para o cidadão, não importa se foram gastos bilhões de reais com a saúde se ele continua sendo atendido nos corredores dos hospitais públicos por inexistência de leitos, ou ainda, se foram gastos bilhões de reais com a educação, se os seus filhos ainda saem das escolas públicas sem o grau de aprendizado esperado.

Aliás, a exemplo dos decantados chamamentos da sociedade para participação de audiências públicas com vistas a ampliar a participação dos cidadãos por ocasião da elaboração das leis orçamentárias (Plano Plurianual, Lei De Diretrizes Orçamentárias, e Lei Orçamentária Anual); nada mais coerente e harmonioso em se permitir aos mesmos cidadãos sua participação – com a sugestão de pontos a serem incluídos na análise –, das próprias prestações de contas anuais dos chefes dos Poderes Executivos estadual e municipais, responsáveis pela execução das nominadas leis orçamentárias.

Por oportuno, ainda sobre a transparência no exercício do controle externo, impõe-se mencionar relevante precedente jurisprudencial deste Tribunal de Contas. No processo de auditoria no contrato de concessão do Sistema Rodovia do Sol (Processo TC 5591/2013), feito também de grande importância para a sociedade, acolhendo solicitação formulada pelo Ministério Público de Contas, o ilustre conselheiro Sebastião Carlos Ranna de Macedo proferiu a Decisão Monocrática Preliminar DECM 360/2014, por meio da qual determinou a disponibilização no sítio do Tribunal de Contas da íntegra atualizada dos autos do processo da Rodosol. Essa corajosa decisão singular, lavrada em 16/04/2014, encontra-se encartada entre as fl. 14158 e 14161 do Processo TC 5591/2013 e reproduzida integralmente a seguir:

[…]

Registre-se que a Representação TC 5591/2013, que apura gravíssimas irregularidades no processo de licitação e de exploração econômica da concessão do Sistema Rodovia do Sol, tramita em caráter não sigiloso […]

Por fim, o Ministério Público de Contas concluiu seu parecer-vista formulando os seguintes pedidos:

a) Preliminarmente, em razão da ausência de parecer ministerial escrito no presente recurso de reconsideração, seja reconhecida a nulidade de todos os atos subsequentes ao momento processual em que deveria ter sido encartado aos autos (vide item 2.1), devendo o presente feito ser encaminhado inicialmente ao ilustre conselheiro relator para que realize o prévio juízo de admissibilidade monocrático previsto no art. 161 da Lei Complementar estadual 621/2012  e no art. 288, inciso XVI, do Regimento Interno do TCEES, providência necessária ao processamento do recurso, isto é, ao prosseguimento do trâmite do processo após a sua autuação  (vide item 2.2), e, na sequência, ao Ministério Público de Contas para emissão do parecer faltante;

b) Conheça do presente recurso de reconsideração, conferindo à Decisão TC 06/2016 interpretação que permita o cômputo do período de suspensão nela previsto no prazo recursal do Ministério Público de Contas, tendo em vista a relevância e a urgência do enfrentamento das questões por ele veiculadas – inclusive já reconhecidas por membros deste Tribunal e de importância semelhante às que motivaram a mitigação do preenchimento dos requisitos de admissibilidade na Representação TC 5591/2013 que apura irregularidades no Sistema Rodovia do Sol  –, notadamente o descumprimento institucionalizado da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a inobservância contumaz do limite mínimo constitucional de 25% em despesa com Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), cuja postergação da sua resolução definitiva por parte desta Corte de Contas, além de acarretar sérios prejuízos à parcela mais carente da sociedade, sujeita o Estado do Espírito Santo à perda da sua autonomia administrativa por violação aos princípios sensíveis agasalhados sob os incisos IV e VII, alínea “e”, do art. 34 da Lex Mater  (vide item 2.3);

c)  Independentemente do conhecimento ou não deste recurso de reconsideração, inclua no Parecer Prévio TC 50/2015 as recomendações apresentadas nas alíneas “f” e “g” do item 3.3.1 do Parecer PPJC 3684/2015 do Ministério Público de Contas, cujas proposições direcionadas ao Poder Executivo estadual restaram acolhidas pelo voto do conselheiro relator Sérgio Manoel Nader Borges  e pelo Plenário do TCEES, porém, por equívoco do Tribunal, não foram inseridas no Parecer Prévio TC 50/2015, quais sejam:

•   Que passe a disponibilizar, por meio do portal da transparência do governo do Estado, dados consolidados de todas as receitas e despesas de todos os Poderes do Estado, conforme determinam os art. 48 e 48-A da Lei Complementar nº 101/2000 , Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), regulamentados pelo Decreto Federal nº 7.185/2010, especialmente seu art. 4º, inciso I  (item 3.3.1, alínea “f”, do Parecer PPJC 3684/2015), sob pena de sujeitar o Estado do Espírito Santo ao não recebimento de transferências voluntárias, nos termos da sanção prevista nos art. 73-B, 73-C e 23, § 3º, inciso I, todos da LRF;

•   Que passe a disponibilizar no portal da transparência do governo do Estado a íntegra dos documentos que compuseram a Prestação de Contas Anual (PCA) do Governador do Estado já a partir da data de envio da PCA pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo, de modo a permitir o acompanhamento, por parte da sociedade, dos processos de emissão do Parecer Prévio pelo TCEES e de julgamento pelo Poder Legislativo, bem como a análise e emissão de juízo de valor por parte do cidadão acerca dos critérios utilizados pelos mencionados órgãos de controle externo (item 3.3.1, alínea “g”, do Parecer PPJC 3684/2015), como forma de garantir o direito fundamental de acesso a informações públicas previsto no art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, e regulamentado pela Lei federal 12.527/2011, Lei de Acesso à Informação (LAI), em especial pelos seus art. 1º, 3º, 4º, 5º, 7º, 8º e 32.

Confira a íntegra do parecer-vista do Ministério Público de Contas