Parecer ministerial destaca que é proibido contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato
Publicação em 12 de novembro de 2022

Diante da necessidade permanente de responsabilidade na gestão fiscal, segundo o Ministério Público de Contas, é proibido contrair obrigação de despesa – qualquer que seja o seu objeto –, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato, e não apenas nos seus dois últimos dois quadrimestres, inclusive as despesas do atípico ano de 2020, ressalvadas aquelas comprovadamente contraídas para o enfrentamento da Pandemia do novo Coronavírus (Sars-Cov-2). A interpretação decorre do art. 55, III, b, 3 e 4, da Lei de Responsabilidade Fiscal, em razão do qual o seu art. 42 adquire caráter redundante, embora relevante do ponto de vista simbólico e político. Esse entendimento já foi reconhecido pelo Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo e consta, há mais de 10 anos consecutivos, do Manual de Demonstrativos Fiscais, elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional, aplicável à União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

 

 

Parecer do Ministério Público de Contas (MPC) no Processo TCE/ES 4717/2020 (Consulta) responde à dúvida formulada pelo Prefeito de Iconha sobre a aplicação art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no que se refere às despesas com pessoal (principalmente com relação ao ano pandêmico de 2020) e esclarece que a vedação legal de realização de obrigação de despesa, quando não há dinheiro em caixa disponível, é válida para todo o mandato do gestor, e não somente para os dois últimos quadrimestres do seu mandato.

O Prefeito Municipal de Iconha objetiva esclarecer dúvida sobre o regime do art. 42 da LRF na aplicação de recursos no combate à pandemia de Covid-19. Foi suscitada a seguinte questão:

 

“1) Considerando a Decisão Normativa TC 001/2018, de 29 de maio de 2018 do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo, será considerado descumprimento ao artigo 42 da LRF, despesa com pessoal, independente da data do empenho, desde que não tenha incremento a despesa no período vedado e que não tenha disponibilidade financeira para cobri-la ao final do exercício de 2020?

 

Conforme elucida a Equipe Técnica do Núcleo de Controle Externo de Recursos e Consultas (NRC), “(…) o objeto da consulta consiste em definir se a despesa com pessoal é computada para fins do referido dispositivo quando não houver disponibilidade financeira para cobri-la, mesmo que não tenha havido aumento dessa despesa e independentemente da data do empenho dela. Ainda, o consulente especifica que sua pergunta requer a consideração da Decisão Normativa TC 01/2018 e do atípico ano de 2020.” (destacou-se).

A Consulta é um instituto previsto no art. 122 da Lei Orgânica do TCE/ES, por meio do qual o Plenário sana dúvidas surgidas na aplicação de dispositivos legais e regulamentares relacionados às matérias de sua competência, se formulada por autoridade legitimada, aí incluídos os prefeitos municipais (art. 122, I), e se a matéria nela suscitada apresentar relevância jurídica, econômica, social ou repercutir no âmbito da administração pública direta e indireta (art. 122, § 2º).

A resposta do TCE/ES, denominada Parecer em Consulta, possui caráter normativo e constitui prejulgamento de tese, ou seja, deverá ser aplicado aos casos concretos quando surgir o tema nele definido (art. 122, § 4º).

Assim sendo, o Processo TCE/ES 4717/2020 pode gerar um precedente vinculante no âmbito do TCE/ES sobre a interpretação do artigo 42 da LRF.

O artigo 42 da LRF proíbe o gestor público de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante os dois últimos quadrimestres do mandato (01/05 a 31/12 do último ano da gestão).

Segundo consta, esse dispositivo legal gera divergências interpretativas, muitas das quais o Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE/ES) pretendeu resolver por meio da Decisão Normativa 00001/2018, cujo teor apenas confirma e sistematiza, em um só documento, os critérios e as orientações adotadas nos seus Pareceres em Consulta TC-025/2004, TC-003/2005 e TC-012/2007.

A Pandemia de Covid-19, evento extraordinário e imprevisível, exigiu respostas de manejo das finanças públicas em tempo e estilo para os quais a legislação até então em vigor não estava preparada. Por isso, foi necessário flexibilizar os rigores da legislação de Direito Financeiro, muito especialmente as regras definidoras da responsabilidade fiscal, de sorte a adaptar a disciplina jurídica das finanças públicas ao contexto excepcional.

A Área Técnica do TCE/ES, por meio do Núcleo de Controle Externo de Recursos e Consultas (NRC), elaborou a Instrução Técnica de Consulta 00006/2021, na qual esclareceu que o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal objetiva “deixar a casa arrumada” para o próximo gestor. Segundo o NRC, “A arrumação da casa, determinada pela norma do art. 42, LRF, significa que o gestor não deixará despesas de pessoal (seja como restos a pagar processados ou não processados, despesas de exercícios anteriores, oriunda de obrigações assumidas oralmente, etc.) para o próximo mandatário sem a suficiente disponibilidade de caixa para a sua cobertura.”.

 

A LRF como um todo determina a organização das finanças públicas do começo ao fim do mandato, sendo possível extrair do conjunto de regras ali presentes que não cabe ao gestor contrair obrigação de despesa – inclusive com pessoal –, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato, e não apenas nos seus dois últimos quadrimestres.

 

 

 

“E se as novas despesas não podem ser deixadas para o mandatário seguinte, com muito mais razão (a fortiori), não podem as antigas. Nenhum princípio ou regra da LRF, ou melhor, do Direito Financeiro, endossa a possibilidade de se deixar despesas previsíveis sem a devida cobertura, seja em relação ao mesmo gestor e, especialmente, para o próximo gestor. O Direito, como um sistema dotado de integridade e coerência, não permitiria brechas que provocassem o efeito oposto ao que a lei pretende regular.”

[…]

“Assim, analisando o ordenamento jurídico como um todo, conclui-se que não há nada no art. 42, LRF, nem em outros dispositivos, que permita ao gestor não pagar (nem deixar sem disponibilidade de caixa para esse efeito) a remuneração e encargos correspondentes dos servidores de cujo serviço ele usufruiu. Ao contrário, o art. 42, LRF, combinado com outras disposições da lei somente robustece a necessidade de pagar as despesas com pessoal.”

“Com base em tudo isso, verifica-se que a inserção do marco temporal (dois últimos quadrimestres) não se deu para excluir da regra as despesas anteriores (as quais o legislador presumia já estarem pagas, pois a LRF não incentiva nem permite a rolagem de dívida), mas para chamar a atenção para esse período, de modo que os administradores fizessem um ajuste fino antes de entregar o cargo.”

[…]

Assim, embora o art. 42, LRF, se refira textualmente apenas aos últimos quadrimestres do último ano de mandato, a responsabilidade fiscal deve ocorrer durante toda a gestão. Ao assumirem seus mandatos, os gestores devem pautar toda a sua conduta ciosos da norma do art. 42, LRF. Isso significa que eles adotarão todas as medidas preventivas e corretivas previstas na lei, para que não se chegue no último ano sem caixa suficiente para arcar com todas as despesas, novas ou antigas. Dessa maneira, se tudo o que está na LRF for cumprido, não há como sobrarem despesas para o próximo mandatário sem a correspondente cobertura, exceto por circunstâncias anormais.” (destacou-se)

 

 

 

Desse modo, segundo consta na Instrução Técnica de Consulta 00006/2021 , “a norma do art. 42, LRF, impõe que se abranjam todas as despesas com pessoal, independentemente de ter havido empenho, correta inscrição em restos a pagar, e a data dessas ou quaisquer outras formalizações. Ou seja, a norma do art. 42, LRF, impõe que o gestor não deixe nenhuma despesa de pessoal (formalizada corretamente ou não) para o próximo mandatário”.

Ainda, com a intenção de não surpreender os gestores, a adoção desse entendimento deveria se dar mediante modulação de efeitos, de modo a aplicar apenas a partir de 2024, para os mandatos iniciados em 2021, e de 2026, para os mandatos iniciados após 2021.

Especificamente sobre o objeto da Consulta, isto é, a aplicação ou não do art. 42 da LRF às despesas com pessoal para o combate à pandemia de Covid-19, o NRC, à luz da Lei Complementar nº 173/2020, opinou que “não entram no cômputo da apuração do art. 42, LRF, as despesas do pessoal que está engajado no combate à pandemia (por exemplo, novos servidores da área de saúde contratados para fazer frente a maior demanda por serviços de atendimento básico, ambulatorial ou hospitalar).”. Ao final, formulou sua resposta nos seguintes termos:

 

 

“É considerado descumprimento ao artigo 42, LRF, deixar sem suficiente disponibilidade de caixa despesas com pessoal, independentemente da data do empenho ou mesmo de não ter sido empenhada, i) que já fazia parte dos quadros de pessoal da Administração, independentemente da data de ingresso no órgão ou entidade, e ii) que, embora contratado ou admitido posteriormente, não atua no combate à calamidade pública decorrente da pandemia do Sars-Cov-2. Esse entendimento terá aplicabilidade a partir de 2024, para os mandatários que iniciam sua gestão em 2021, e em 2026, para os que iniciarão sua gestão posteriormente.

Não é considerada na apuração do art. 42, LRF, de modo a não necessitar de disponibilidade de caixa a despesa do pessoal que atua no combate à calamidade pública decorrente da pandemia do Sars-Cov-2, relativa à contratação ou admissão de novos profissionais, bem como o pagamento de horas extras ou outros gastos maiores dos profissionais que já compunham o quadro de pessoal.”

 

 

Em sua manifestação, o MPC concordou com a supracitada sugestão de resposta do NRC e com o entendimento – registrado na fundamentação – de ser vedado ao gestor, durante todo o mandato, contrair obrigação de despesa sem disponibilidade de caixa, mas discordou da necessidade de modulação de efeitos, pois a imposição já constaria na LRF, como texto originário, desde a sua publicação em 4 de maio de 2000, e seria recomendada, há mais de 10 anos consecutivos, pelo Manual de Demonstrativos Fiscais elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional, aplicável à União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

 

“Na 4ª ed., válido para o exercício financeiro de 2011: ‘Apesar de a restrição estabelecida no art. 42 limitar-se aos dois últimos quadrimestres do respectivo mandato, a LRF estabelece que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente em que se previnem riscos e se corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, o que impõe que ajustes devam ser observados no decorrer de todo o mandato, de forma que as receitas não sejam superestimadas, nem haja acúmulo excessivo de passivos financeiros. Como regra geral, as despesas devem ser executadas e pagas no exercício financeiro e, extraordinariamente, podem ser deixadas obrigações a serem cumpridas no exercício seguinte com a suficiente disponibilidade de caixa. Assim, o controle da contração de obrigações deve ocorrer simultaneamente à execução financeira da despesa em todos os exercícios e não somente no último ano de mandato’.”

 

 

Por fim, para o entendimento sobre a proibição de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato não figurar apenas como uma consideração lateral, sem maior importância, mas, pelo contrário, constituir verdadeiro precedente vinculante a ser obrigatoriamente aplicado em todos os casos futuros nos quais o tema seja tratado – principalmente nas prestações de contas –, propôs a instauração de um Incidente de Prejulgado, nos termos do art. 174, da Lei Orgânica do TCE/ES, e dos arts. 348 a 355, do Regimento Interno do TCE/ES.

Para o Órgão Ministerial, é necessário interpretar o conjunto legislativo no sentido de que, em nenhum momento do mandato, o gestor pode contrair obrigação de despesa corrente sem disponibilidade de caixa.

Conforme destaca o Parecer, o período referido no artigo 42 da LRF – dois últimos quadrimestres do mandato –, está especialmente suscetível aos “desmandos do mandatário faltoso, que poderia comprometer o equilíbrio entre receitas e despesas, quer por investidas populistas (intencionando a reeleição ou a eleição de um aliado), quer por revanchismo (criando embaraços à gestão futura em face da sua iminente ou já consumada derrota nas urnas)”, razão pela qual o dispositivo tem por objetivo “impedir o gestor em fim de mandato de contrair obrigações capazes de desorganizar as finanças públicas”, além de assegurar a igualdade eleitoral ao inibir o mandatário de turno de “manipular a máquina para se promover sem o necessário planejamento e cuidado com o equilíbrio fiscal. Em última instância, intenta preservar a saúde da própria democracia”.

Ainda de acordo com o Parecer, a vedação de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato consta, expressamente, no art. 55, III, b, 3 e 4, da LRF.

 

“Forçoso é rechaçar a interpretação de que o gestor está proibido de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, apenas nos últimos dois quadrimestres do seu mandato. Decididamente, ao gestor é proibido contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato.

E mais: para tanto não é sequer necessário falar em interpretação extensiva do art. 42, LRF. A conclusão encimada – que ficará mais clara no item 2.4, a seguir – independe do referido dispositivo. A proibição por todo o mandato deriva de outras disposições, especialmente do art. 55, III, b, 3, LRF.

Sendo assim, a que se presta o art. 42, LRF?

A sua função é reforçar ao gestor a obrigação de cumprir, também no fim do mandato, o mais basilar dever imputado pela responsabilidade fiscal: o de não contrair obrigação de despesa sem a necessária disponibilidade de caixa, onerando receitas de exercícios futuros com despesas de exercícios passados”.

 

Nessa ordem de ideias, lendo conjuntamente os arts. 42 e 55, III, b, 3 e 4, ambos da LRF, arremata: “É inconcebível que, fiando-se apenas na literalidade do art. 42, LRF, se conclua que o gestor poderia contrair obrigação de despesa, sem a correspondente e contemporânea disponibilidade de caixa, nos primeiros três anos de mandato e no primeiro quadrimestre do último ano do mandato. Considerar tal conduta indesejável apenas de um ponto de vista ideal, metajurídico, mas não reprovada pelo direito positivo, é desprezar todo o arsenal normativo que condensa o princípio da responsabilidade fiscal, mormente o art. 55, III, b, 3 e 4, LRF”.

A propósito, o MPC cita o Parecer Prévio 00114/2020-1, proferido no Processo TC 0329/2018-1, no qual a 1ª Câmara da Corte de Contas, acompanhando a Área Técnica e o Ministério Público de Contas, recomendou a REJEIÇÃO DAS CONTAS de prefeito municipal que, no ano de 2017 – note-se: no primeiro ano do mandato –, além de outras ilicitudes, inscreveu restos a pagar não processados sem disponibilidade financeira, em ofensa ao art. 55, III, b, 3, LRF.

Desse modo, para o Órgão Ministerial, essa decisão reconhece, inequivocamente, a proibição de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato, exatamente na linha ora desenvolvida pelo Parquet de Contas na Consulta.

Assim, para o Parquet de Contas os arts. 42 e 55, III, b, 3 e 4, da LRF, “têm o mesmo conteúdo: proibir a inscrição em restos a pagar da obrigação de despesa contraída sem disponibilidade de caixa. A diferença é apenas o período do mandato durante o qual tem eficácia: o art. 55, III, b, 3, LRF, varre todo o mandato, já o art. 42, LRF, fica confinado aos dois últimos quadrimestres“.

Conforme explica o Parecer: “Claro está que o art. 55, III, b, 3, LRF, abrange todo o período do mandato, inclusive aquele a que se refere o art. 42, LRF, ao passo em que este atua apenas nos dois últimos quadrimestres do tempo de gestão”. Ou seja, o dever de não contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, incide durante todo o mandato, por força do art. 55, III, b, 3, da LRF, e subsistiria mesmo diante de uma eventual revogação do art. 42 da mesma Lei.

Tudo isso para frisar, uma vez mais, a tese central do Parecer: “o art. 42, LRF, não cria dever jurídico que, sem ele, inexistiria. Ele apenas explicita dever jurídico decorrente de disposições da LRF – notadamente do art. 55, III, b, 3 e 4 – e da Lei n. 4.320/64, já indicadas. Destas decorre – no mínimo implicitamente – que o gestor é proibido, durante todo o mandato, de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa proveniente do mesmo exercício em que contraída; daquela, explicitamente, que o gestor é proibido de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, nos últimos dois quadrimestres do mandato.

Ao avaliar a proposta do Núcleo de Controle Externo de Recursos e Consultas (NRC) no sentido de “modular efeitos” do entendimento acerca da proibição, durante todo o mandato, de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, o MPC manifesta discordância.

No caso, dois motivos levam o Parquet de Contas a descartar a necessidade de modulação de efeitos ou de instituição de regime de transição”. Primeiro, não se trata sequer de interpretação do art. 42, da LRF, mas, principalmente, do seu art. 55, III, b, 3 e 4. Segundo, a finalidade do art. 23, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, base legal para a modulação, é

 

“(…) proteger o gestor que agiu em conformidade com entendimento até então prevalecente, firme e duradouro, das consequências lesivas decorrentes da mudança inesperada geradora de dever jurídico até então inexistente.

 

Como o próprio dispositivo condiciona a sua incidência aos casos de nova interpretação atribuída a norma de conteúdo indeterminado criadora de dever jurídico novo, o Parecer considera a modulação de efeitos obrigatória somente “quando presentes estes requisitos: (i) o entendimento até então prevalecente era firme e duradouro; (ii) o destinatário tinha efetivamente orientado sua ação segundo aquele sentido; (iii) a mudança de entendimento era imprevisível e inesperada; e (iv) o novo entendimento inflige desvantagem até então inexistente que, de boa-fé, não era esperada”.

No tema em questão, o MPC nega a existência de mudança de entendimento imprevisível e inesperada criadora de desvantagem até então inexistente.

Aplicando esse regime ao tema em questão, o MPC afasta a modulação de efeitos com base no seguinte raciocínio:

 

Dado que a legislação de regência – e não o art. 42, LRF, isoladamente – proíbe o gestor, durante todo o mandato, de contrair obrigação de despesa sem disponibilidade de caixa, onerando receitas de exercícios futuros com despesas de exercícios passados – o que é confirmado pelo Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo quando reprova contas de gestores que, no primeiro ano do mandato, inscrevem despesas, sem disponibilidade de caixa, em restos a pagar, por violação do art. 55, III, b, LRF –, inexiste novidade interpretativa geradora de dever jurídico novo ou exigência de dever preexistente até então não exigido. Ausente o requisito (iv), não há que se falar em regime de transição.”

 

E considerando todo o conjunto normativo apontado, inclusive a recomendação reiterada por mais de 10 anos consecutivos no Manual de Demonstrativos Fiscais emitido pela Secretaria do Tesouro Nacional, conclui:

 

(…) nenhum gestor pode alegar que, ao contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, nos três primeiros anos e no primeiro quadrimestre do último ano do mandato, onerando receitas de exercícios futuros com despesas de exercícios passados, praticou conduta adequada a regulamento estável anterior e que, por isso, tem a legítima expectativa de que sua conduta será considerada lícita.

 

 

INCIDENTE DE PREJULGADO

 

Para assegurar a utilidade desse rico debate travado a respeito da proibição de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato, o MPC requer a instauração de Incidente de Prejulgado.

Trata-se de um instituto por meio do qual o TCE/ES define a interpretação de qualquer norma jurídica ou procedimento da administração, reconhecida a relevância da matéria de direito e sua aplicabilidade de forma geral (art. 174, da Lei Orgânica do TCE/ES).

A importância de fazê-lo por meio do Incidente de Prejulgado está no fato de tal provimento constituir uma decisão normativa, ou seja, um precedente formalmente vinculante a ser observado por todos os órgãos decisórios do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (ou seja, seus Conselheiros, em decisões monocráticas, suas Câmaras e seu Plenário) em todo e qualquer caso no qual tal assunto de direito incidir (art. 355 do Regimento Interno do TCE/ES), e só poderá ser revogado ou reformado em pronunciamentos sobre tese, nunca durante a decisão de um caso concreto (art. 353 do Regimento Interno do TCE/ES).

No caso concreto, a decisão da Consulta formulada pelo Prefeito Municipal de Iconha, por si só, não necessariamente terá essa aptidão, pois formalmente trata apenas da interpretação do art. 42 da LRF.

O MPC suscita o Incidente de Prejulgado exatamente para assegurar o alargamento da força normativa (precedente vinculante) da decisão proferida no caso concreto. Para tanto, frise-se, ele não foge dos limites da discussão, antes preserva o seu núcleo – saber se o gestor pode contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa –, e o projeta para todo o mandato. Em outras palavras, ele não transcende o objeto da discussão, antes o potencializa. Pretende-se definir que o art. 55, III, b, 3, LRF, abrange o art. 42, LRF, e torna proibido, durante todo o mandato, inscrever obrigação de despesa em restos a pagar, sem disponibilidade de caixa.

Dito isso, o Órgão Ministerial demonstra o atendimento dos pressupostos exigidos pelo art. 174 da Lei Orgânica do TCE/ES para a instauração do Incidente de Prejulgado: (i) legitimidade, da qual é dotado o Ministério Público de Contas; (ii) relevância da matéria de direito, presente no caso concreto em razão de a responsabilidade fiscal, tanto em seu teor programático quanto concreto, constituir a espinha dorsal do Direito Financeiro; e (iii) aplicação de forma geral a todos os jurisdicionados, ou seja, o alcance amplo, vinculando todos os gestores à vedação, durante todo o mandato, de inscrever em restos a pagar a obrigação de despesa contraída sem disponibilidade de caixa.

O caso, agora, vai para o Plenário decidir sobre o requerimento de instauração do Incidente de Prejulgado. Se for acolhido, terá preferência sobre a Consulta formulada pelo Prefeito de Iconha, e a tese ali firmada será aplicável ao caso. Se for rejeitado, se passará ao julgamento da Consulta. Cabe recurso contra a decisão de indeferimento.

 

DESPESAS COM PESSOAL VINCULADAS AO COMBATE À PANDEMIA DA COVID-19

Especificamente a respeito dos gastos com o enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente da pandemia da COVID-19, o MPC considera suspensa a eficácia do art. 42 da LRF, pois vislumbra a ocorrência de “fato novo e inesperado que desarranja as contas públicas e conduz ao inadimplemento de obrigação de despesa contraída com disponibilidade de caixa, (…).”.

 

“Por força do que prescreve o art. 65, § 1º, II, LRF, não é considerada na apuração do art. 42, LRF, nos dois últimos quadrimestres do mandato, nem na do art. 55, III, b, 3, LRF, em todo o restante do mandato, e podem ficar sem disponibilidade de caixa proveniente do exercício em que contraída: (i) a despesa do pessoal que atua no combate à calamidade pública decorrente da Pandemia do Novo Coronavírus (Sars-Cov-2), relativa à contratação ou admissão de novos profissionais; (ii) a despesa do pessoal que atua no combate à calamidade pública decorrente da Pandemia do Novo Coronavírus (Sars-Cov-2), relativa ao pagamento de horas extras ou outros gastos maiores dos profissionais que já compunham o quadro de pessoal, independentemente da data do ingresso no órgão ou entidade; (iii) a despesa de outra natureza diretamente relacionada ao combate à calamidade pública decorrente da Pandemia do Novo Coronavírus (Sars-Cov-2).”

 

Alerta, contudo, que não houve suspensão indiscriminada da eficácia do art. 42 da LRF .

 

“O acréscimo que deve ser feito é o de que a suspensão de eficácia do art. 42, LRF, deve ser interpretada em conformidade com a posição defendida neste Parecer. Vale dizer, no que concerne às despesas diretamente relacionadas ao combate à Covid-19, fica suspensa a proibição de contrair obrigação de despesa, sem disponibilidade de caixa, durante todo o mandato, enquanto durar o estado de calamidade.”

 

Logo após a manifestação do Órgão Ministerial, o Processo TCE/ES 4717/2020 (Consulta) foi encaminhado ao gabinete do Relator do caso, o conselheiro Sebastião Carlos Ranna de Macedo, para elaboração de Voto.

 

LEIA TAMBÉM:

CONFIRA o conteúdo completo do Parecer do MPC no Processo TCE/ES 4717/2020 

ACOMPANHE o andamento do Processo TCE/ES 4717/2020 no site oficial do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE/ES)

CONFIRA TAMBÉM o conteúdo completo da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00)

ACESSE a Instrução Técnica de Consulta clicando aqui