Artigo: O relatório da auditoria na Rodosol
Publicação em 7 de maio de 2014

Por Walter Junior Cabral de Lima, chefe de gabinete no Ministério Público de Contas

A grande repercussão gerada pela divulgação do relatório da auditoria extraordinária realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCEES) na concessão do Sistema Rodovia do Sol (Rodosol) vem suscitando pertinentes questionamentos acerca desse importante instrumento de fiscalização: afinal, o minucioso trabalho científico de quase 600 laudas, elaborado ao longo de 8 meses, a partir da análise de mais de 30 mil páginas de documentos, corporifica apenas um relatório preliminar, inconclusivo? Haverá um segundo relatório de auditoria, então conclusivo? Uma possível resposta para essas perguntas pode ser extraída do Regimento Interno (RI) do TCEES e das Normas de Auditoria Governamental (NAG), conjunto de regras e conceitos que disciplinam os procedimentos de auditoria no âmbito da corte de contas capixaba, aos quais recorro no intuito de reunir elementos para a elucidação da questão.

Consoante preceitua a NAG nº 4700, os trabalhos de auditoria governamental, quando concluídos, devem ser comunicados e divulgados formalmente por meio de um relatório de auditoria. O relatório, elemento final após a execução dos trabalhos de campo, constitui documento técnico obrigatório de que se serve o profissional de auditoria para relatar suas constatações, análises, opiniões, conclusões e recomendações sobre o objeto da auditoria (NAG 4701 e art. 173, parágrafo único, RI). Possui duas funções básicas: comunicar as constatações do auditor e subsidiar as tomadas de decisões (NAG 4702). Quando as soluções para as ocorrências identificadas não podem esperar e precisam ser sanadas de imediato, sob pena de se perder a eficácia e a efetividade da auditoria governamental, são emitidos relatórios parciais ou intermediários (NAG 4707.3.1), que não eliminam a obrigatoriedade de emissão de relatório final (NAG 4707.3.1.2).

Finalizado o relatório, a unidade técnica competente elabora instrução técnica inicial, que deve apontar os indícios de irregularidades detectadas, a responsabilidade individual ou solidária pelo ato inquinado e, se for o caso, quantificar o dano causado ao erário, com proposta de conversão do processo em tomada de contas especial, sem prejuízo de outras proposições a serem dirigidas ao relator (art. 316, RI). A conversão do procedimento fiscalizatório em tomada de contas especial constitui providência obrigatória a ser adotada pelo TCEES quando o dano ao erário encontrar-se quantificado e os responsáveis devidamente identificados (art. 201, RI), devendo ser realizada, preferencialmente, por ocasião da citação (art. 317, RI).

No caso da Representação TC 5591/2013, instaurada com o propósito de aferir a regularidade da exploração econômica do Sistema Rodosol, conquanto ainda não tenha havido sua conversão em tomada de contas especial, o relatório de auditoria apresentado subsidiou a decisão da corte pela citação dos envolvidos. Tecnicamente, citação é o ato pelo qual o tribunal dá ciência ao responsável de processo contra ele instaurado, chamando-o para se defender ou recolher a importância devida (art. 358, I, RI). Por meio da citação formaliza-se a acusação, devendo-se dar, a partir de então, ampla publicidade aos demais atos do processo (art. 180, parágrafo único, RI).

Certamente, não faria sentido chamar alguém para se defender de irregularidades trazidas à luz por meio de um relatório de auditoria preliminar ou inconclusivo, sob pena de se perpetrar grave violação aos direitos e garantias individuais da pessoa citada, acarretando vício insanável ao devido processo legal. A ausência de conclusão ou a existência de dúvidas acerca das irregularidades tornaria ilegítima e imprudente a imputação prematura de responsabilidades, inviabilizando, por certo, o exercício do direito de defesa. No desempenho do controle externo da Administração Pública, não se admite citação com base apenas em indícios, mas em informações seguras, devidamente consubstanciadas em evidências (NAG 1102.1), relevantes e suficientes para fornecerem uma base sólida para as conclusões e recomendações (NAG 4401.1). Indícios servem, tão-somente, para legitimar a instauração de procedimento fiscalizatório (art. 177, III, RI).

Não é demais lembrar que, após a citação, o ônus de provar a insubsistência das irregularidades oficialmente verificadas pelo tribunal de contas transfere-se às pessoas citadas, de modo que, se não forem apresentadas justificativas plausíveis para elidir os fatos constatados, devem ser mantidas as irregularidades consignadas no relatório de auditoria e formalizadas no processo por meio da instrução técnica inicial, tendo por consequência natural a procedência da representação e a condenação dos responsáveis.

Registre-se, por oportuno, que no caso em tela, a rigor, não é o relatório de auditoria que deve ser qualificado como inicial, mas a etapa em que se encontra o processo de fiscalização (art. 287, RI), ainda pendente de conclusão do contraditório e da ampla defesa. A auditoria na Rodosol, na qualidade de instrumento de prova para o processo de fiscalização (art. 188, I, RI), encontra-se efetivamente concluída. Ademais, o inédito e inusitado emprego da expressão “relatório preliminar ou inicial”, em alusão ao relatório de auditoria, pode dissimular fatos e induzir o cidadão a ter uma percepção equivocada da realidade, arrefecendo a imprescindível atuação do controle social, além de desqualificar o grandioso trabalho executado pela área técnica do TCEES. Aliás, os próprios auditores não deixam dúvidas quanto ao aspecto conclusivo da análise quando afirmam: “Este relatório pretende ser claro (NAG 4703.1.1), preciso (NAG 4703.1.2), oportuno (NAG 4703.1.3), imparcial (NAG 4703.1.4), objetivo (NAG 4703.1.5), conciso (NAG 4703.1.6), completo (NAG 4703.1.7), conclusivo (NAG 4703.1.8), construtivo (NAG 4703.1.9), simples (NAG 4703.1.10) e impessoal (NAG 4703.1.11).” (fls. 10345 e 10346 da Representação TC 5591/2013)

Conclui-se, portanto, salvo melhor juízo, que o relatório produzido pela competente equipe de Auditores de Controle Externo, principal carreira de Estado do órgão guardião das finanças públicas estaduais e municipais, não se cuida de peça preliminar ou inicial, nem de análise parcial ou intermediária dos fatos, mas sim de parecer final e conclusivo da auditoria empreendida no Sistema Rodosol, apto a subsidiar não só a citação dos responsáveis para se defenderem ou recolherem a importância devida como também a conversão do feito em tomada de contas especial, nos termos dos dispositivos mencionados.