Não selecionáveis? Denúncias submetidas à análise prévia de seletividade podem não se mostrar oportunas para o TCE
Publicação em 20 de outubro de 2023

Prefeito do Município de São José do Calçado requereu ao Tribunal de Contas a instauração de fiscalização para apurar supostas irregularidades praticadas na gestão de recursos públicos destinados ao Hospital Estadual de São José do Calçado para o combate da pandemia de COVID-19, mas Área Técnica do TCE/ES avalia que não se mostra conveniente fiscalizar e sugere o arquivamento da Representação.

Ministério Público de Contas (MPC) emitiu parecer contestando a proposta da Área Técnica do TCE/ES de não fiscalização das irregularidades comunicadas pelo Chefe do Poder Executivo do Município de São José do Calçado, senhor Antônio Coimbra de Almeida.

Na Representação ofertada (Processo TCE/ES 962/2023), o gestor municipal informa ao TCE/ES supostas irregularidades praticadas pelo então Diretor-Geral do Hospital Estadual São José do Calçado (HESJC), senhor Leandro Teodoro de Almeida, na gestão de recursos públicos destinados ao combate da pandemia de COVID-19.

De acordo com o Prefeito, o HESJC teria celebrado e executado contrato com a empresa L&L Construtora Ltda., no valor de R$ 253.110,59, para o fornecimento e instalação de divisórias (paredes de gesso acartonado – drywall), conforme Ordem de Serviço nº 342/2020, com os seguintes vícios:

a) Ausência de formalização de instrumento contratual;

b) Ausência de supervisão por parte de profissional de engenharia do hospital;

c) Ausência de Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) no órgão competente por parte da contratada;

d) Ausência de planilha com preços individuais extraídos de tabela referencial.

A efetiva ocorrência desses indícios não foi examinada pela Área Técnica do TCE/ES, que se limitou a realizar uma análise de seletividade e avaliou baixo risco, materialidade e relevância da ação de controle, com base no artigo 177-A do Regimento Interno da Corte de Contas.

O Processo TCE/ES 962/2023 está no gabinete do Conselheiro Relator, Marco Antônio da Silva, para elaboração de voto, mas não há data marcada para o julgamento.

Confira o posicionamento da Equipe Técnica clicando AQUI.

Confira o Parecer do MPC clicando AQUI.

POSICIONAMENTO DA ÁREA TÉCNICA DO TCE/ES: NÃO SELECIONÁVEL

Apesar de preenchidos os requisitos legais de admissibilidade e conhecida a Denúncia pelo Conselheiro Relator, o Núcleo de Controle Externo de Edificações (NED) concluiu que não estão presentes as condições para o processamento imediato da fiscalização. Assim sendo, sugeriu a extinção do processo sem a análise do mérito e seu posterior arquivamento.

 

“Diante do exposto, entende-se não haver motivação para o prosseguimento da instrução processual, nos termos do art. 177-A do RITCEES, em virtude do baixo risco, materialidade e relevância desta ação de controle, bem como por não se mostrar oportuna nesse momento.”, destacou o NED.

 

Segundo explica do MPC, quando o Corpo Técnico de Auditores do TCE/ES defendeu a ausência de preenchimento dos requisitos técnicos de procedibilidade (“risco, relevância, materialidade e oportunidade”), em 10/08/2023, se baseou na redação defasada do artigo 177-A do Regimento Interno da Corte de Contas, isto é, sem as alterações promovidas pela Emenda Regimental nº 23/2023, publicada em 14/06/2023, com vigência a partir da data da sua publicação (art. 23), que inseriu a análise de outros três requisitos: gravidade, urgência e tendência.

Conforme consta no Parecer Ministerial, “Por certo, o exame de todos os requisitos técnicos de procedibilidade previstos no art. 177-A do RITCEES revela-se imprescindível para a completa instrução preliminar do feito, haja vista que a seletividade do objeto de controle não importa discricionariedade no exame dos seus requisitos.”.

 

“Conquanto a ausência de preenchimento de apenas um dos requisitos do art. 177-A possa motivar a extinção do feito sem resolução do mérito, o não enfrentamento de todos os requisitos pela área técnica pode ensejar a necessidade de reabertura da instrução processual para análise complementar, caso o colegiado entenda, por exemplo, que os requisitos parciais analisados pela área técnica encontram-se preenchidos.”, avalia o MPC.

 

A falta de análise fundamentada de todos os requisitos do artigo 177-A torna instrução técnica incompleta, destaca o MPC, por isso seria necessária a reabertura da instrução processual.

CONTROLE PRÉVIO DE SELETIVIDADE DE DENÚNCIAS: REDAÇÃO DO ART. 177-A DO REGIMENTO INTERNO DO TCE/ES É QUESTIONADA PELO MPC

O MPC, em seu parecer, defende que uma vez preenchidos os requisitos legais de admissibilidade contidos na Lei Orgânica do TCE/ES, surge para o cidadão o direito fundamental de ter o mérito da sua denúncia analisada pelo Tribunal de Contas. Desse modo, a submissão da denúncia à “análise de seletividade”, posteriormente ao juízo de admissibilidade, representaria indevida inovação na disciplina da organização e da forma de fiscalização da Corte de Contas

 

“Diante da insólita redação do art. 177-A do RITCEES, questiona-se: o Tribunal de Contas pode criar critérios técnicos de seletividade, distintos dos requisitos de admissibilidade previstos na Lei Complementar Estadual 621/2012, para restringir a análise do mérito do objeto de controle das denúncias formuladas pelo cidadão? A Corte de Contas pode dispor do dever constitucional de fiscalizar indícios de irregularidade?”, questiona o MPC.

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE É AJUIZADA CONTRA O ART. 177-A

Em 21 de setembro de 2023, o Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7459, com pedido de medida cautelar, contra o artigo 177-A do Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo, na qual questionou a criação da etapa intitulada “análise prévia de seletividade do objeto de controle” como condição para o processamento das denúncias e representações na âmbito do TCE/ES.

O MPC, em 22 de junho de 2023, encaminhou petição ao Procurador-Geral da República solicitando a propositura de ADI em face do artigo 177-A. Confira alguns trechos relevantes:

 

“Muito além de um dever do Tribunal de Contas, é um direito constitucional de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato (art. 74, § 2º, CF), não somente denunciar a prática de irregularidades ou ilegalidades, mas também vê-las regularmente processadas e apreciadas pelo órgão de controle externo, independentemente de suas dificuldades estruturais ou da materialidade da infração.

[…]

Conforme dito, a criação de soluções antijurídicas que inviabilizam o resguardo do interesse público consubstancia clara hipótese de renúncia de competência, bem como abominável restrição ao titular da res publica de requerer a apuração de qualquer ilegalidade na aplicação dos recursos públicos, conforme delineado no texto constitucional, o que não é admissível no âmbito do ordenamento jurídico pátrio em obediência aos máximos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal.

Em suma, o art. 177-A do RITCEES ao condicionar a deflagração de processo de fiscalização, mesmo quando atendidos os requisitos de admissibilidade para o conhecimento da denúncia pelo relator, a critérios de risco, relevância, materialidade, repita-se, dotados de máxima abstração e generalidade, cria ilegítima restrição ao exercício do direito garantido aos cidadãos e associações, bem assim ao desempenho do dever imposto aos agentes públicos arrolados no art. 99, § 1º, da LC Estadual n. 621/2012.

Inclusive, negar a deflagração de procedimento de fiscalização, uma vez preenchidos os requisitos de admissibilidade, além de vilipendiar o direito e o dever de denúncia previsto no art. 74, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, constitui verdadeira negativa de jurisdição. Além disso, fomenta a impunidade, na medida que apenas o Tribunal de Contas possui competência legal para aplicação de penalidade pela violação às normas legais, conforme art. 1º, incisos I e XIV, da LC n. 621/2012.”, destacou 2ª Procuradoria de Contas.

 

Confira a petição inicial da ADI 7459/ES clicando AQUI.

EXTRAPOLAÇÃO DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR DO TCE/ES

O Órgão Ministerial é enfático ao defender que a Lei Orgânica do TCE/ES já indica os pressupostos de admissibilidade da Denúncia (art. 94, I e V), da Representação lato sensu (art. 99, § 2º) e da Representação em face de licitação, ato ou contrato (art. 101, parágrafo único). Assim sendo, a regulamentação pelo Legislativo estadual na Lei Orgânica do TCE/ES elimina qualquer margem de competência normativo-regulamentar da Corte de Contas por meio do Regimento Interno do TCE/ESnotadamente para acrescentar pressupostos não constantes em lei. Conforme consta, os pressupostos dessas modalidades de fiscalização já estão indicados na Lei Orgânica do TCE/ES e não podem ser ampliados por outro instrumento normativo.

 

“Criou-se, portanto, à revelia da Lei Orgânica do TCE/ES, um SISTEMA DE SELETIVIDADE que possui a habilidade de transformar a atuação popular e o próprio ambiente de recebimento das denúncias num recinto controlado, burocrático e abstrato demais àqueles que desejam, apenas, colaborar ou dialogar com o Controle Externo, a ponto de ser incompreensível em alguns casos.”, criticou o MPC também no Processo TCE/ES 1958/2022.

 

O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO? “NA FORMA DA LEI”

O art. 76, § 2º, da Constituição do Estado do Espírito Santo, estabelece que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas do Estado.

De acordo com o MPC, não poderia o Regimento Interno do TCE/ES, norma de natureza meramente regulamentar, que não é lei, criar condicionantes não previstas na Lei Orgânica do TCE/ES ao exame do mérito de Denúncias e Representações.

MPC DEFENDE A ATUAÇÃO DO CIDADÃO COMO PROTAGONISTA NA GESTÃO PÚBLICA, FISCALIZANDO E PARTICIPANDO ATIVAMENTE NA FORMA DA LEI

A ideia central do MPC é que o cidadão não deve ser um agente passivo, que apenas utiliza os serviços públicos. Pelo contrário: ele deve atuar como protagonista na gestão pública, fiscalizando e participando ativamente na forma da lei, fortalecendo a democracia e promovendo maior engajamento da população com a coisa pública.

TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADE

Na visão do MPC, a seletividade do objeto denunciado permite ao Tribunal de Contas se eximir do seu dever constitucional de atuar como órgão de controle externo independente, transferindo a responsabilidade de fiscalização dos indícios de irregularidade para o próprio órgão fiscalizado, ante o respaldo oferecido pelo art. 177-A, § 3º, II, do Regimento Interno do TCE/ES:

 

3° A unidade técnica competente se manifestará:

II – pela notificação do órgão ou entidade jurisdicionada e do órgão responsável pelo controle interno, para adoção de providências que entenderem cabíveis, quando a análise prévia de seletividade revelar o não atendimento dos critérios definidos no caput ou, ainda, quando a ação de controle não se mostrar oportuna, com proposta de extinção do feito sem resolução de mérito e seu posterior arquivamento, dando-se ciência ao denunciante. (Redação dada pela Emenda Regimental nº 023, de 14.6.2023).

 

Ocorre que esse redirecionamento da apuração ao “órgão responsável pelo controle interno, para providências que entender cabíveissem a avaliação da real capacidade de fiscalização Controle Interno local – muitas vezes composto pela “EUQUIPE” de apenas um servidor comissionado – pode acabar com qualquer perspectiva de fiscalização dos fatos narrados.

Além disso, segundo explica o MPC, na petição encaminhada ao Procurador-Geral da República, “ao eximir-se na sua atuação, trespassando-a ao órgão de controle interno, além de configurar renúncia de competência, conforme acima delineado, contrapõe-se ao disposto no art. 71, inciso VIII, da Constituição Federal, art. 71, inciso IX, da Constituição Estadual e arts. 1º, inciso XIV, e 134 e 135 da LC Estadual n. 621/2012, segundo os quais apenas o Tribunal de Contas possui competência para ‘aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário’”.

POSICIONAMENTO DO MPC

O MPC defende que os Tribunais de Contas deveriam ser receptivos e reverentes à participação popular, estimular o seu exercício e demonstrar as consequências positivas práticas dele decorrentes, mas não condicionar a participação popular ao atendimento de numerosos e complexos pressupostos de admissibilidade, muito menos sujeitar o cidadão à “reprovação” no momento de denunciar.

Ao invés de simplificar e valorizar a atuação daquele que se dispõe a denunciar, a avaliação que se faz é a de que a Corte de Contas pode estar se distanciando ainda mais do cidadão com essa “barreira à participação popular”.

 

LEIA TAMBÉM:

PROPOSTA DE ALTERAÇÃO REGIMENTAL PODE DIFICULTAR A VIDA DE QUEM DENUNCIA IRREGULARIDADES NO TCE/ES (MPC/ES, publicado em 04/01/2023). Disponível em: https://www.mpc.es.gov.br/2023/01/proposta-de-alteracao-regimental-pode-dificultar-a-vida-de-quem-denuncia-irregularidades-no-tce-es/

TCE-ES JULGA IRREGULARES CONTAS DE EX-GESTORES PÚBLICOS DO HOSPITAL SÃO JOSÉ DO CALÇADO (TCE/ES, publicado em 20/07/2022). Disponível em: https://www.tcees.tc.br/tce-es-julga-irregulares-contas-de-ex-gestores-do-hospital-sao-jose-do-calcado/

RESOLUÇÃO DO TCE-ES DEFINE INDICADORES E PARÂMETROS DO PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DE SELETIVIDADE  (TCE/ES, publicado em 14/08/2023). Disponível em: https://www.tcees.tc.br/resolucao-do-tce-es-define-indicadores-e-parametros-do-procedimento-de-analise-de-seletividade/