MPC-ES pede suspensão da aplicação de lei estadual que exige controle parental no ensino sobre gênero em escolas capixabas

WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn
E-mail

Representação com pedido cautelar para suspender a aplicação da Lei 12.479/2025 aponta diversos vícios de inconstitucionalidade formal e material da norma e risco de gastos públicos desnecessários para implementá-la

O Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES) propôs uma representação em que pede a concessão de medida cautelar para suspender imediatamente a aplicação da Lei Estadual 12.479, de 17 de julho de 2025, que dá aos pais e responsáveis o direito de proibir a participação de seus filhos em atividades pedagógicas relacionadas a gênero em todas as escolas do Espírito Santo. A representação aponta vícios flagrantes de inconstitucionalidade formal e material na norma e alerta para o risco de danos irreparáveis à educação pública capixaba se ela for mantida.

O pedido será analisado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES), no Processo 5781/2025, sob a relatoria do conselheiro Rodrigo Chamoun. O MPC-ES ressalta que a atuação do Tribunal de Contas na defesa da ordem jurídica e dos recursos públicos é ampliada pelo controle incidental de constitucionalidade, podendo afastar a aplicação de normas inconstitucionais para resguardar o erário e a efetividade dos direitos fundamentais.

Impactos da lei

A Lei Estadual 12.479/2025 estabelece que “atividades pedagógicas de gênero são aquelas que abordam temas relacionados à identidade de gênero, à orientação sexual, à diversidade sexual, à igualdade de gênero e a outros assuntos similares”. Ela obriga as instituições de ensino a informar aos pais sobre tais atividades, com manifestação expressa de concordância ou discordância, sob pena de responsabilização civil e penal. Além disso, impõe que o Poder Executivo regulamente as sanções em até 90 dias.

Na avaliação do MPC-ES, a lei cria um mecanismo de veto parental sobre conteúdos pedagógicos, restringindo a abordagem de gênero e sexualidade no ambiente escolar, além de interferir diretamente na aplicação de recursos públicos destinados à educação. Tal restrição modifica o conteúdo programático, gera custos administrativos adicionais, impacta a capacitação de professores, afeta a aquisição de materiais didáticos e compromete programas educacionais já em execução, sem previsão orçamentária específica.

Inconstitucionalidade formal

Entre os vícios de inconstitucionalidade formal da Lei 12.479/2025, o MPC-ES destaca a usurpação de competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, conforme o art. 22, inciso XXIV, da Constituição Federal. O documento destaca que o parecer técnico-jurídico da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) e o parecer jurídico da Procuradoria da Casa de Leis já haviam apontado essa invasão de competência, ressaltando que a atuação do Estado para legislar sobre educação deveria ser apenas suplementar.

A representação ministerial enfatiza que os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum Curricular já regulamentam o conteúdo da educação básica, incluindo temas transversais relacionados à diversidade e cidadania. Também destaca que não houve participação do Conselho Estadual da Educação na elaboração da norma, sendo que o órgão é responsável por dialogar com toda a comunidade escolar.

Outra inconstitucionalidade formal indicada na representação é a violação da Lei 12.479/2025 ao princípio da iniciativa privativa do Poder Executivo. A matéria tratada na lei é de iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, pois envolve a organização e o funcionamento da administração pública, além de atribuições para instituições de ensino.

Por causa desses vícios formais, a Procuradoria-Geral da Ales, em parecer sobre o projeto de lei que originou a norma, já havia concluído pela inconstitucionalidade formal da proposta, inclusive por violar o Princípio da Reserva de Administração e a separação de poderes.

Inconstitucionalidade material

Além dos aspectos formais, o MPC-ES aponta graves inconstitucionalidades materiais da Lei 12.479/2025, que comprometem a liberdade de cátedra, a gestão democrática do ensino, a liberdade de expressão, o padrão de qualidade social do ensino e viola direitos fundamentais das crianças e adolescentes.

Liberdade de cátedra

A lei restringe a liberdade de professores e alunos, cerceando o debate e a reflexão sobre temas sociais importantes, o que compromete a formação completa e plural dos estudantes. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou contra leis estaduais que vedam a abordagem de questões de gênero, considerando-as contrárias às diretrizes nacionais de educação.

“A doutrina constitucionalista tem reiterado que a liberdade de ensinar e aprender é um direito fundamental que não pode ser relativizado por leis estaduais que busquem impor uma visão única ou ideológica sobre determinados temas. A escola é um espaço de pluralidade e de construção do conhecimento, onde o diálogo e o respeito às diferenças devem prevalecer. A Lei n. 12.479/2025, ao permitir o veto parental sobre conteúdos pedagógicos, transforma a escola em um ambiente de censura e de exclusão, comprometendo a qualidade social do ensino e a formação de cidadãos críticos e conscientes”. (Trecho da Representação 5781/2025)

Para o MPC-ES, a lei estadual impõe restrições severas à liberdade de cátedra, submetendo o exercício da função docente à prévia autorização dos pais, o que configura censura incompatível com a autonomia acadêmica constitucionalmente protegida.

Gestão democrática do ensino

A representação aponta que, ao instituir o veto parental, a lei interfere na gestão democrática do ensino, desconsiderando a autonomia pedagógica das escolas e a expertise dos profissionais da educação.

Padrão de qualidade social do ensino

A vedação de temas como identidade de gênero e orientação sexual impede a escola de promover a inclusão, o respeito à diversidade e o desenvolvimento integral dos alunos, podendo levar à marginalização e ao preconceito.

“A doutrina tem enfatizado que a qualidade social do ensino está intrinsecamente ligada à capacidade da escola de promover a inclusão, o respeito à diversidade e o desenvolvimento integral dos alunos. A vedação de temas como identidade de gênero e orientação sexual impede que a escola cumpra seu papel de promover o diálogo e a compreensão sobre questões que afetam a vida de muitos estudantes e suas famílias. Essa restrição pode levar à marginalização e ao preconceito, comprometendo o ambiente escolar e a formação de cidadãos tolerantes e respeitosos.” (Trecho da Representação 5781/2025)

Liberdade de expressão

O órgão ministerial entende que a lei configura uma forma de censura prévia, incompatível com a livre expressão e o pluralismo de ideias no ambiente escolar, garantidos pela Constituição Federal (Art. 5º, IV e IX). Aponta, ainda, que a vedação de temas relacionados a gênero e sexualidade, sob o pretexto de proteção familiar, pode levar à autocensura e ao empobrecimento do currículo, prejudicando a qualidade do ensino e a formação de cidadãos críticos e engajados.

Direitos fundamentais das crianças e adolescentes

A representação aponta, por fim, que a restrição a conteúdos pedagógicos sobre gênero e sexualidade viola direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Constituição Federal, podendo expor crianças e adolescentes à desinformação, ao preconceito e à discriminação. A lei cria duas categorias de estudantes, violando o direito à igualdade e o princípio da não discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero, conforme entendimento consolidado pelo STF.

Medida cautelar

Por visualizar possíveis danos irreparáveis à educação pública, à liberdade de cátedra, à gestão democrática do ensino e aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, o Ministério Público de Contas pede a suspensão imediata da aplicação da lei, por meio de medida cautelar. O objetivo é negar a aplicação da Lei 12.479/2025 até o julgamento final da representação.

A urgência se justifica pela proximidade do prazo para regulamentação das sanções, de 90 dias a partir da publicação da norma, e pela interferência da lei nas políticas públicas de ensino já vigentes.

Assim, a medida visa também proteger os recursos públicos, buscando evitar a geração de despesas públicas desnecessárias e ineficientes, prejuízo à qualidade da educação e ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, insegurança jurídica e desorganização do sistema educacional. Por isso, o pedido cautelar inclui também determinação para que os Poderes Executivos estaduais e municipais se abstenham de praticar quaisquer atos com base na da Lei Estadual 12.479/2025, bem como de regulamentá-la.

No mérito, o MPC-ES pede que a representação seja julgada procedente para que o Tribunal de Contas, no exercício do controle incidental de constitucionalidade, negue a aplicabilidade de todos os dispositivos da Lei Estadual 12.479/2025.

Veja na íntegra a Representação do MPC-ES
Acompanhe o andamento do Processo TC 5781/2025