Com o título “Renúncia de receitas tributárias e o princípio da transparência no orçamento público: o papel dos Tribunais de Contas”, artigo assinado pela servidora do Ministério Público de Contas (MPC-ES) Priscila Zuchi Guio foi publicado na edição de dezembro da Revista Fórum de Contratação e Gestão Pública.
Em síntese, o artigo aborda a importância da transparência na gestão fiscal, especialmente no que diz respeito às renúncias de receitas tributárias, como isenções e reduções de base de cálculo, além de destacar o papel fundamental dos Tribunais de Contas na fiscalização desses benefícios e na garantia da transparência dos atos relacionados a eles.
A autora conclui que “a atuação proativa dos Tribunais de Contas na promoção da transparência, por meio de recomendações e relatórios detalhados, é crucial para que a sociedade compreenda os impactos das renúncias de receitas e participe ativamente do debate sobre a gestão dos recursos públicos”.
Confira abaixo a íntegra do artigo, originalmente publicado na edição 276, de dezembro de 2024, da Revista Fórum de Contratação e Gestão Pública.
Renúncia de receitas tributárias e o princípio da transparência no orçamento público: o papel dos Tribunais de Contas
Por Priscila Zuchi Guio
Especialista em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito. Pós-graduada em Direito Constitucional e Administrativo pela Faculdade Brasileira Univix. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Assessora no Ministério Público de Contas do Estado do Espírito Santo.
Resumo: O trabalho aborda a importância da transparência na gestão fiscal, especialmente no que diz respeito às renúncias de receitas tributárias, como isenções e reduções de base de cálculo. Destaca-se que essas renúncias têm impactos econômicos equivalentes às despesas públicas, exigindo o mesmo nível de transparência, conforme preconizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000) e pela Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527 de 18 de novembro de 2011). Os Tribunais de Contas, enquanto órgão de controle externo, desempenham um papel crucial na fiscalização da legalidade e legitimidade das concessões de benefícios fiscais, devendo promover a divulgação clara e acessível das informações relacionadas a essas renúncias. Enfatiza-se que a transparência deve ser garantida por meio de relatórios de gestão fiscal, audiências públicas e a disponibilização de dados financeiros em meios eletrônicos. Assim, a transparência fiscal é vista como um pilar fundamental para a integridade da administração pública e a promoção de um Estado Democrático de Direito, assegurando que as concessões de benefícios fiscais sejam acompanhadas e justificadas de forma adequada.
Palavras-chave: Orçamento; Tributo; Renúncia; Transparência; Controle.
1 Introdução
Para a satisfação das necessidades públicas, o Estado utiliza-se do seu exercício de soberania para obtenção de recursos e realização de gastos, cuja atividade desempenhada se traduz na atividade financeira, entendida como o conjunto de ações por ele desempenhadas para obter receitas e realizar gastos (TORRES, 2013, p. 3).
A plena realização da atividade financeira depende da previsão e execução do orçamento público, bem como pela delimitação das receitas e despesas em um dado exercício financeiro (PISCITELLI, 2015, p. 21). Enquanto instrumento técnico, o orçamento constitui “um quadro técnico contábil para coordenar comparativamente despesas e receitas públicas, de sorte que o Estado possa imprimir ordem e método da Administração” (BALEEIRO, 2002, p. 412).
Receita e despesa são partes, portanto, do todo que compõe o orçamento público e são necessárias à realização da atividade financeira do Estado (PISCITELLI, 2015, p. 21). São premissas essenciais para o funcionamento do Estado Democrático de Direito e para a consecução das garantias impostas pelos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.
No tocante às receitas, a principal forma de ingressos nos cofres públicos é aquela proveniente dos tributos, denominada de receitas tributárias. Conforme Ricardo Lobo Torres “o mais importante dos itens da receita pública é o dos ingressos tributários, derivados da economia dos cidadãos” (2013, p. 186).
Desde o surgimento das primeiras sociedades organizadas, a prática da cobrança de tributos foi utilizada para subsidiar as atividades e serviços dos Estados. A partir do advento dos Estados Modernos, a elaboração das primeiras constituições escritas e o desenvolvimento do constitucionalismo enquanto ideologia voltada para a proteção e concretização dos direitos fundamentais, a relação dos tributos com o Estado de Direito adquire uma nova interface, a extrafiscalidade.
O Estado possui o dever-poder de arrecadar tributos para custear os gastos previstos na Lei Orçamentária, assim como o contribuinte possui o dever de pagar imposto, conforme obra de José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar imposto (1998). Tal premissa se apresenta com a efetiva arrecadação de todos os tributos como ordena o artigo 11, caput, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000): “Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”.
A arrecadação, portanto, não constitui tarefa facultativa, mas, de modo contrário, constitui requisito essencial da responsabilidade na gestão fiscal a arrecadação efetiva de tributos.
A cultura dos direitos humanos, contudo, afetou significativamente o campo tributário na medida em que a norma tributária foi tomada “como meio de financiamento de políticas públicas ou mesmo como instrumento extrafiscal imediato para a sua concretização” (CORREIA NETO, 2017, p. 23).
Nesse aspecto, os tributos são arrecadados por meio do sistema tributário nacional e direcionados ao cumprimento de diversas finalidades previstas no orçamento público. Dessa forma, os direitos constitucionais são vinculados direta ou indiretamente aos gastos públicos, sobretudos os direitos de caráter prestacional, os quais perpassam pela noção de efetivação dos direitos fundamentais e fazem do dever de tributar uma obrigação estatal indispensável. (CORREIA NETO, 2017).
Ao assumir novas responsabilidades, incluindo a promoção de direitos fundamentais, como educação, saúde, habitação e um meio ambiente equilibrado, a visão negativa da tributação é relativizada e passa a ser compreendida como um instrumento de arrecadação destinada à efetivação de direitos fundamentais, sobretudos àqueles cujo Estado possui um papel ativo de efetivação (CALIENTO, 2017).
Se por um lado o contribuinte tem o dever fundamental de pagar tributos, por outro, o Estado tem o dever fundamental de arrecadar tributos, isto é, não poderia o Estado, sem autorização do parlamento, renunciar a uma obrigação constitucionalmente instituída e determinada, cuja finalidade, para além de financiar as atividades próprias da administração pública, também abrange a promoção de direitos, sejam eles individuais, coletivos ou difusos.
No entanto, a renúncia de receita tributária tem sido utilizada como mecanismo de promoção do desenvolvimento econômico e social ao incentivar setores específicos da economia e aliviar o custo de produção e consumo de determinados bens e serviços (ANDRADE, 2003).
Nesse aspecto, o governo opta por não arrecadar parte da receita tributária, por meio isenções, reduções de alíquotas, créditos fiscais e outros benefícios.
A renúncia de receita compreende, assim, espécie de benefício ou incentivo de natureza fiscal ou tributária que gera, do ponto de vista orçamentário e estatal, redução dos ingressos nos cofres públicos (PISCITELLI, 2018) e, do ponto de vista do contribuinte, exoneração tributária, com finalidades que variam entre geração de emprego e renda, incentivar determinado setor da economia, desestimular consumo de produtos indesejáveis, entre outros.
A transparência sobre esses recursos tem se tornado tema central no debate sobre controle social e institucional das ações, atividades, decisões estatais. Enquanto ideologia, a transparência busca promover a responsabilidade, a confiança e a eficiência no governo, as quais devem operar de forma aberta, clara e acessível ao público em geral. Enquanto prática, a transparência objetiva divulgar informações relevantes de forma clara, acessível e compreensível para os cidadãos sobre como o governo utiliza os recursos, toma decisões e implementa políticas públicas.
Os Tribunais de Contas exercem papel crucial na fiscalização e promoção da transparência das renúncias de receitas tributárias, atuando como órgãos auxiliares dos Poderes Legislativos. Sua função vai além da simples verificação de legalidade; eles asseguram que concessões fiscais, como isenções e subsídios, cumpram rigorosos critérios estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, incluindo estimativas de impacto financeiro e justificativas que garantam a não afetação das metas fiscais. Isso se alinha ao princípio da transparência na gestão fiscal, a qual exige que esses benefícios sirvam a funções econômicas e sociais, sem comprometerem o equilíbrio orçamentário e financeiro das contas públicas.
Além da fiscalização, os Tribunais promovem a divulgação clara e acessível dos dados sobre renúncias de receita, como os montantes e setores beneficiados, permitindo que a sociedade monitore o impacto dessas concessões. A transparência fortalece o controle social e possibilita que a sociedade e outros órgãos avaliem a adequação e eficácia das políticas de renúncia tributária adotadas, contribuindo para uma administração pública mais eficiente e responsável.
2 Renúncia de receita tributária
A renúncia de receita é um conceito multifacetado, que pode ser interpretado de diversas maneiras, dependendo do ponto de vista adotado, seja ele orçamentário, tributário ou econômico.
Segundo Ana Clara Bliacheriene (2012), a renúncia de receita representa a desistência de um direito e se torna irreversível, isentando o devedor do pagamento de um tributo. Esse ato visa estimular atividades econômicas, culturais e sociais:
Renúncia de receita é o ato pelo qual “a Administração Pública extingue, de forma unilateral, a obrigação de pagamento de um crédito que lhe é devido, desobrigando em definitivo desse crédito a pessoa devedora do mesmo” (Afonso Gomes de Aguiar, 2006, p. 91). A renúncia tem caráter de abdicação ou de desistência de um direito. Logo, uma vez consumado, o ato torna-se irreversível. A renúncia decorre de uma forma de incentivo ou benefício tributário, a fim de estimular, mediante lei, o desenvolvimento de certas atividades econômicas, culturais e sociais. (BLIANCHERIENE, 2012, p. 74)
Nesse aspecto, as renúncias de receitas são disposições especiais à regra tributária geral com o objetivo específico de alcançar grupos relativamente restritos de contribuintes, setores econômicos ou regiões geográficas. A compreensão de Francisco Carlos Ribeiro de Almeida (2024) sobre renúncia de receita refere-se a um termo usado na terminologia orçamentária para descrever perdas de arrecadação tributária, as quais implicam a dispensa da arrecadação para financiar projetos de interesse específico:
Renúncia de receita são disposições especiais à regra tributária geral com objetivo específico de alcançar grupos relativamente restritos de contribuintes, setores econômicos ou regiões geográficas e que, em princípio, poderiam ser substituídos por programas de gastos diretos, ou seja, financiados com recursos do orçamento fiscal.
[…]
Comecemos pela “renúncia de receita”, que é termo afeto à atribuição de fiscalização dos órgãos de Controle Externo e Interno. Classicamente, esse é um termo consagrado na terminologia orçamentária, servindo para expressar “perdas de arrecadação tributária” em decorrência dos diversos tipos de benefícios tributários (isenção, remissão, redução especial de base de cálculo ou de alíquotas, etc)concedidos pelo poder público a contribuintes de determinados setores, regiões ou mesmo pessoas físicas.
[…]
Pode-se também arguir que a receita pública renunciada pelo governo para financiar projetos, programas e atividades de interesse de determinadas regiões geográficas, setores econômicos ou segmentos de contribuintes deixa de ser carreada aos orçamentos da União para custeio de atividades públicas de interesse da sociedade em geral e, por via de consequência, deve ser objeto de rigoroso controle dos Poderes Legislativo e Executivo e dos Órgãos de Controle Externo e Interno da Administração Pública Federal, quanto aos aspectos da legalidade, eficiência e eficácia e da efetiva consecução dos objetivos socioeconômicos pretendidos. (ALMEIDA, 2024, s.p)
Ao abordar o tema, Celso de Barros Correia Neto enfatiza que a renúncia e o incentivo possuem relação de causa e consequência, mas de modo rigoroso, representam uma só norma, isto é, além de induzir uma conduta e promover efeitos externos, também ensejam custo orçamentário:
A Constituição Federal admite a utilização das normas tributárias com finalidade de estímulo. Menciona, em diversas oportunidades, as expressões “incentivo” e “benefício”, sem deixar de lado seus impactos financeiros orçamentários, destacados no conceito de “renúncia de receitas”, também previstos em seu texto (CORREIA NETO, 2014, p. 27- 28).
A LRF, no §1º do artigo 14, por sua vez, define as espécies de renúncia de receitas, como sendo anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, bem como prevê a possibilidade de serem instituídos outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
Assim, a renúncia é entendida como uma forma de incentivo, caracterizada pela irrevogabilidade do ato e pela sua função de desobrigar o contribuinte, enquanto outros autores enfatizam que essa prática resulta em perdas de arrecadação tributária, afetando diretamente o financiamento de projetos de interesse público.
Além disso, a Constituição Federal e a Lei de Responsabilidade Fiscal reconhecem a renúncia de receitas como um meio legítimo de fomentar o desenvolvimento econômico e social, permitindo ao governo oferecer benefícios tributários direcionados a grupos específicos de contribuintes.
Essa prática, no entanto, exige um controle rigoroso por parte dos órgãos de fiscalização, como o Poder Legislativo e os Órgãos de Controle Externo e Interno, para garantir a legalidade, eficiência e eficácia das renúncias, bem como a consecução dos objetivos socioeconômicos pretendidos.
3 O princípio da transparência pública orçamentária sobre as renúncias de receitas
A transparência das contas públicas é hoje amplamente garantida por instrumentos normativos fundamentais, os quais destacam a já mencionada Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como por meio da Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011). Esses diplomas estabelecem que as informações públicas, incluindo aquelas sobre planejamento e execução orçamentária, devem ser acessíveis a todos os cidadãos.
A Lei de Responsabilidade Fiscal reforça esse compromisso ao estabelecer que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe ação planejada e transparente para prevenir riscos e corrigir desvios, conforme §1º do artigo 14, abaixo:
§1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
Esse princípio de transparência, previsto também no artigo 48 da referida lei, indica que devem ser amplamente divulgados instrumentos de gestão, tais como os planos, orçamentos, leis de diretrizes orçamentárias, relatórios de execução e de gestão fiscal, e suas versões simplificadas, utilizando-se de meios eletrônicos de acesso público:
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos;
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público;
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.
A Lei de Responsabilidade Fiscal também aponta que a transparência será assegurada por incentivos à participação popular, audiências públicas, divulgação em tempo real de informações detalhadas sobre a execução financeira e adoção de um sistema de controle integrado. Esse modelo visa ao pleno acompanhamento da sociedade, proporcionando a clareza necessária para o controle social e estatal sobre as finanças públicas.
A renúncia de receita, resultante de concessões de benefícios fiscais, exige, assim, o mesmo nível de transparência dispensado ao orçamento, o qual prevê receitas e despesas para determinado exercício financeiro. Ainda que a renúncia de receita não configure despesa direta, sua importância na atividade financeira do Estado faz com que ela também deva ser gerida de acordo com o princípio da transparência fiscal.
A Lei de Acesso à Informação, ao regulamentar o direito constitucional de acesso a informações (Constituição Federal de 1988, artigo 5º, XXXIII), também fortalece a transparência das renúncias de receitas, organizando-se em duas vertentes: a transparência ativa, em que a Administração Pública divulga informações espontaneamente, e a transparência passiva, na qual as informações são fornecidas mediante solicitação do cidadão.
Conforme exposto por Correia Neto (2010, p. 81), a transparência repousa sobre a publicidade e a participação, possibilitando o controle social e estatal. Dessa maneira, o princípio da transparência destina-se tanto ao Estado quanto à sociedade, assegurando que a gestão fiscal e as concessões de benefícios fiscais sejam acompanhadas por todos os cidadãos, em consonância com os valores de um Estado Democrático de Direito.
A transparência nas contas públicas, garantida pela Lei de Responsabilidade Fiscal e pela Lei de Acesso à Informação, é fundamental para a promoção de um governo responsável e participativo. Ao assegurar que tanto a execução orçamentária quanto as renúncias de receita sejam amplamente divulgadas e acessíveis, cria-se um ambiente propício para o controle social e para a fiscalização das ações governamentais.
A extensão desse princípio às renúncias de receitas destaca a importância de tratar benefícios fiscais com a mesma seriedade que as despesas públicas, reconhecendo sua relevância na gestão financeira do Estado. Dessa forma, é possível fortalecer a democracia e a confiança nas instituições, permitindo que todos os cidadãos exerçam seu papel de vigilância e participação na construção de uma administração pública mais eficiente e transparente.
4 O papel dos Tribunais de Contas na transparência das renúncias de receitas tributárias
A autotutela da Administração Pública prevê que ela reveja seus próprios erros, corrigindo eventuais irregularidades (CARVALHO FILHO, 2019). Esse princípio fundamenta o controle interno, realizado por cada órgão ou entidade, em relação às suas atividades, atos e agentes, dentro de cada Poder (Legislativo, Executivo e Judiciário) (DAL POZZO, 2010).
Além do controle interno, a Constituição Federal prevê, no artigo 70, o controle externo sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e de suas entidades, diretas e indiretas, exercido pelo Congresso Nacional. Esse controle abrange a análise da legalidade, legitimidade, economicidade, além da aplicação das subvenções e renúncias de receitas.
Nesse contexto, o Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, exerce o controle externo, uma vez que se trata de um órgão distinto da estrutura fiscalizada. Celso Antônio Bandeira de Mello caracteriza essa fiscalização como um controle parlamentar direto, realizado de maneira sistemática e detalhada (BANDEIRA DE MELLO, 2007).
Nos estados, o controle externo é realizado pelas Assembleias Legislativas, com apoio dos Tribunais de Contas Estaduais. Nos municípios onde há Conselho ou Tribunal de Contas, essa função é desempenhada pelas Câmaras Municipais.
Conforme o artigo 74, as normas relativas à organização, composição e fiscalização do Tribunal de Contas da União aplicam-se também aos Tribunais de Contas dos Estados, Conselhos e Tribunais de Contas Municipais (PISCITELLI, 2018, p. 240). O artigo 31, §1º, e o artigo 75, caput, ao instituírem o princípio da simetria concêntrica, conforme explica Wolgran Junqueira Ferreira, determinam que “todos os órgãos estaduais e municipais devem ter simetria com o Tribunal de Contas da União” (FERREIRA apud DAL POZZO, 2010, p. 99).
Os Tribunais de Contas são, assim, órgãos auxiliares do Poder Legislativo, têm a função de “fiscalizar a totalidade das atividades desenvolvidas pelo poder público, o que leva a verificar a contabilidade de receitas e despesas, a execução orçamentária, os resultados operacionais e as variações patrimoniais do Estado, sob os aspectos de legalidade, compatibilidade com o interesse público, economia, eficiência, eficácia e efetividade” (CAMPELO, 2003, p. 134).
Esses órgãos são constitucionalmente responsáveis pela fiscalização orçamentária em cada esfera de governo, devendo assegurar a efetiva realização das receitas e despesas públicas, incluindo as renúncias de receitas. De forma geral, a função fiscalizatória dos Tribunais de Contas, conforme descrita por Dal Pozzo (2010), inclui a realização de auditorias e inspeções nas unidades da Administração direta e indireta dos três poderes da União, podendo ser de iniciativa própria, a pedido do Legislativo ou motivada por denúncias.
Para fortalecer o papel do Tribunal de Contas, além de sua função de apuração de irregularidades, o órgão tem expandido sua atuação junto a governos e à sociedade, destacando-se como um agente auxiliar na promoção da eficiência, eficácia e efetividade da administração pública, por meio de funções corretivas, normativas e de ouvidoria.
Assim, o Tribunal de Contas desempenha um papel essencial na fiscalização da legalidade e legitimidade dos recursos públicos além de acompanhar a concessão de benefícios fiscais classificados como renúncia de receita, garantindo que estejam em conformidade com a legislação e cumpram uma função social e econômica sem comprometer o orçamento público.
Além da fiscalização, os Tribunais de Contas desempenham um papel essencial na promoção da transparência, estimulando a divulgação clara, completa e acessível dos dados relativos às renúncias de receita. Isso inclui recomendações sobre práticas de divulgação e o desenvolvimento de relatórios específicos que detalhem os montantes, setores beneficiados e impactos fiscais associados a essas concessões.
A Lei de Responsabilidade Fiscal determina que qualquer concessão ou ampliação de benefícios fiscais, como isenções, anistias ou subsídios, deve ser acompanhada de uma estimativa detalhada do impacto financeiro e de uma justificativa fundamentada. O artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal exige que a concessão de benefícios seja condicionada à comprovação de que não afetará negativamente o cumprimento das metas fiscais e, se necessário, à compensação por meio do aumento de receitas ou do corte de despesas.
Dessa forma, a legislação busca assegurar que as renúncias sejam utilizadas de maneira criteriosa e estratégica, preservando o equilíbrio das contas públicas e garantindo que esses benefícios atendam a uma função social e econômica definida.
Nesse contexto, o papel dos Tribunais de Contas é central tanto na fiscalização quanto na promoção da transparência pública desses recursos. A fiscalização exercida pelos Tribunais envolve a análise da conformidade das renúncias de receita com as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal, verificando se os gestores públicos seguiram as etapas legais e apresentaram as estimativas de impacto necessárias. Além disso, os Tribunais têm a função de monitorar os efeitos práticos das renúncias no orçamento, buscando garantir que esses benefícios fiscais contribuam efetivamente para os objetivos previstos, como o incentivo a determinados setores econômicos ou a redução das desigualdades sociais.
Ao tornar essas informações amplamente disponíveis, os Tribunais não apenas cumprem uma função fiscalizadora, mas também fortalecem o controle social, possibilitando que a sociedade e outros órgãos acompanhem o uso dos recursos e a adequação das políticas de renúncia às realidades fiscais do ente federativo.
5 Conclusão
A promoção da transparência na gestão fiscal, especialmente no que se refere às renúncias de receitas tributárias, é essencial para garantir a responsabilidade e a integridade da administração pública. As leis que a regem, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Acesso à Informação, estabelecem diretrizes claras que visam assegurar que todos os cidadãos tenham acesso a informações relevantes sobre a execução orçamentária e a concessão de benefícios fiscais.
Essa transparência não apenas fortalece a confiança da sociedade nas instituições públicas, mas também permite um controle social efetivo, essencial para a construção de um Estado Democrático de Direito.
Os Tribunais de Contas desempenham um papel fundamental nesse contexto, atuando como agentes de fiscalização e controle das finanças públicas. Sua função vai além da mera verificação da legalidade; eles são responsáveis por garantir que as renúncias de receitas estejam em conformidade com a legislação e que cumpram uma função social e econômica. A atuação proativa dos Tribunais de Contas na promoção da transparência, por meio de recomendações e relatórios detalhados, é crucial para que a sociedade compreenda os impactos das renúncias de receitas e participe ativamente do debate sobre a gestão dos recursos públicos.
Por fim, a transparência fiscal deve ser vista como um compromisso contínuo da administração pública, que deve buscar constantemente formas de aprimorar a divulgação de informações e incentivar a participação popular. A adoção de práticas transparentes não apenas cumpre uma exigência legal, mas também reflete um compromisso ético com a sociedade.
Referências
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Texto originalmente publicado pela Revista Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 23, n.276, p. 59-71, dez-2024