Entidades lançam movimento em defesa da reforma dos Tribunais de Contas
Idealizado por entidades de servidores e membros do Ministério Público que atuam nos tribunais de contas, foi lançado em São Paulo, no último dia 22, o Movimento #MudaTC, em defesa de uma reforma dos Tribunais de Contas.
O movimento é liderado por três entidades – Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon), Confederação Nacional das Carreiras e Atividades Típicas de Estado e Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc) – e “quer ser de toda a sociedade, uma vez que somente um forte desejo da sociedade poderá promover as mudanças necessárias em órgãos tão importantes, mas tão vulneráveis à captura pelos grupos políticos dominantes”, defende o presidente da Ampcon, procurador do MPC no Tribunal de Contas da União (TCU) Júlio Marcelo de Oliveira, em artigo.
Confira o artigo na íntegra:
Por Júlio Marcelo de Oliveira*
Embora fundamentais para o bom funcionamento da administração pública, reunindo amplos poderes para exercer o controle das despesas públicas, fato é que os tribunais de contas não vêm executando a contento o seu papel, tanto assim que temos estados falidos com contas aprovadas, uma administração pública extremamente ineficiente e pouco profissional, que presta, como regra geral, serviços públicos de péssima qualidade.
Onde estavam os tribunais de contas enquanto rombos fiscais bilionários eram construídos? O que faziam enquanto elefantes brancos eram erguidos para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas, eventos que deixaram como legado apenas dívidas, despesas inúteis e escândalos de corrupção? Enquanto essa orgia recente com o dinheiro público acontecia, educação, saúde e segurança perdiam de 7 a 1 para a incompetência e a corrupção.
Não falta dinheiro para os tribunais de contas. Juntos custam mais de R$ 10 bilhões por ano. Então, por que não funcionam bem?
Algumas respostas são bem conhecidas, como a indicação política da maior parte de seus membros e a total falta de fiscalização sobre o que fazem e como fazem. Acabar com as indicações políticas e instituir mecanismos de fiscalização dos tribunais de contas é, portanto, urgente.
Não é possível aceitar a nomeação de conselheiros sem curso superior ou com formação que não tem nada que ver com a fiscalização de contas públicas, como dentistas e veterinários. Não é admissível que cargos de conselheiros sejam objeto de barganhas políticas para acomodar aliados em momentos de definição de chapas eleitorais.
Causam náuseas as notícias de que foram compradas antecipações de aposentadorias de conselheiros para que vagas fossem abertas para políticos interessados em transformar em oportunidades de negócio cargos vitalícios, com foro privilegiado, sem nenhuma fiscalização e com muito poder.
As notícias de que governadores e prefeitos pagam propinas para terem contas aprovadas em tribunais de contas, como visto na operação Quinto do Ouro no Rio de Janeiro, evidenciam que esse sistema não pode continuar como está. Infelizmente, o que ocorreu no Rio de Janeiro não é caso isolado. Estudo da Transparência Brasil revela que dezenas de conselheiros são processados perante o Superior Tribunal de Justiça por improbidade administrativa ou crimes contra a administração pública.
Mesmo no Tribunal de Contas da União, corretamente considerado o melhor tribunal de contas, há investigações em curso no âmbito da operação Lava Jato que despertam graves dúvidas e preocupações sobre seu regular funcionamento.
Há apenas três anos, o Senado da República estava em vias de indicar o então senador Gim Argello para o cargo de ministro do TCU! Como todos sabem, Gim Argello hoje cumpre pena em Curitiba, por vários crimes contra a administração pública, como mais um dos condenados na operação Lava Jato.
É preciso, portanto, qualificar urgentemente a composição dos tribunais de contas, tanto no campo da formação técnica como no da idoneidade moral e reputação ilibada de seus membros.
Não se trata aqui de abordar esse tema de forma simplista, demonizando os políticos e endeusando os de formação técnica. Longe disso. É evidente que há políticos honestos e competentes, dignos da maior admiração, como também há técnicos ineptos, preguiçosos e desonestos.
Não sejamos maniqueístas, mas também não sejamos ingênuos. Sabemos todos o momento pelo qual o país passa, testemunhamos todos como a corrupção se infiltrou em todos os poderes, em todos os níveis. Temos de pensar e almejar os modelos de instituições menos vulneráveis à corrupção e à ingerência política. Aqui falamos de probabilidades, de modelos que facilitam ou que dificultam essas práticas nocivas. O modelo atual simplesmente não funciona.
Há, contudo, outras questões igualmente muito importantes para que possam funcionar bem. A organização de seus órgãos de auditoria, com atribuição dessas funções apenas a servidores concursados e com independência técnica para executar suas atividades também é fundamental. Auditorias conduzidas por servidores comissionados, sem vínculo efetivo com o órgão de controle, ou por servidores cujos cargos não têm atribuição legal de auditoria, tornam essas atividades vulneráveis a ingerências políticas, a vazamento de informações sensíveis, além de serem ilegais e tecnicamente precárias.
Há tribunais de contas com mais da metade de seus servidores comissionados, indicados por conselheiros e políticos amigos que deveriam ser fiscalizados!
Por último, mas não menos importante, há a questão da falta de autonomia do Ministério Público de Contas, considerado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 789/DF, em 1993, como inserido na intimidade estrutural do tribunal de contas, o que implica dizer que o Ministério Público de Contas fica à mercê de decisões discricionárias dos tribunais de contas que afetam diretamente sua capacidade de funcionamento.
Embora o STF tenha assegurado independência funcional aos seus membros, o MP de Contas depende do espaço físico, dos servidores disponíveis, das mesas e cadeiras e computadores que o tribunal de contas tenha por razoável colocar à sua disposição. Até mesmo a iniciativa da lei que estabelece quantos são os procuradores de contas considera-se reservada ao tribunal de contas!
Enquanto o Ministério Público judicial pode atuar com liberdade e desenvoltura, com orçamento próprio, com autogoverno, o Ministério Público de Contas resta submetido aos humores dos tribunais de contas. Neste exato momento, discute-se no Tribunal de Contas da União se todos os seus processos serão enviados para exame do Ministério Público de Contas, algo que deveria ser absolutamente natural e rotineiro.
É praticamente consensual na sociedade brasileira o diagnóstico de que é preciso reformar os tribunais de contas. No entanto, a reforma nunca acontece, embora haja algumas propostas de emenda à Constituição para isso. Por quê?
Primeiro, porque a sociedade acredita que os políticos não serão capazes de fazer uma reforma que, ao mesmo tempo, aumente a fiscalização que sofrerão e lhes retire oportunidade de ocupação de espaços de poder.
Segundo, porque essa mesma sociedade não consegue perceber quão diferente poderia ser o funcionamento da administração pública brasileira, quão mais eficiente poderia ser o gasto público se os tribunais de contas funcionassem de acordo com suas finalidades. Quando todos nós nascemos, os tribunais de contas já eram no imaginário brasileiro o lugar onde se arquivam os amigos. Nós ainda não tivemos a experiência de um tribunal de contas funcionando em toda a sua potencialidade. Como não sabemos bem o que estamos perdendo, não lutamos tanto por essa causa.
A Constituição dá a esses órgãos poderes extraordinários! Suas decisões têm caráter mandamental. Eles podem fixar prazo para o exato cumprimento da lei! Está lá no inciso IX do artigo 71 da Constituição. Cabe ao gestor cumprir as determinações dos tribunais de contas. Se não concordar, resta-lhe recorrer ao Poder Judiciário.
Somente o Poder Judiciário pode autorizar o gestor público a não cumprir uma determinação do tribunal de contas. Vejam quanto potencial desperdiçado.
É essa combinação de descrença na possibilidade de mudança com a falta de percepção do quanto ela pode nos trazer que tem sido o real impedimento à reforma dos tribunais de contas. A missão e o desafio do #MudaTC é justamente mostrar à sociedade brasileira o quanto ela tem a ganhar com essa reforma e que ela é possível sim, se a sociedade quiser e exigir.
Vejam o que a Polícia Federal, o MPF e o Judiciário têm oferecido à sociedade com a operação Lava Jato. Vejam o que ocorre quando as instituições funcionam. A Lei da Ficha Limpa depende fundamentalmente do bom funcionamento dos tribunais de contas. Eles têm o potencial de nivelar a administração pública por cima, excluindo da vida pública os maus gestores.
Assim como o controle atuante induz melhorias de qualidade na administração, o oposto também ocorre. O controle leniente, omisso ou corrompido, conduz ao desrespeito com o dinheiro público.
Tribunais de contas eficientes podem produzir uma verdadeira revolução na administração pública brasileira. A emissão de um parecer pela rejeição das contas de uma Presidente da República, por um robusto conjunto de irregularidades, é apenas uma pequenina amostra disso. Muito mais pode e deve ser feito.
O #MudaTC vai dialogar com todos os setores da sociedade, mostrar o quanto ela pode ganhar com essa reforma e que só e somente ela, sociedade brasileira, terá força para vencer as forças que querem manter os tribunais de contas exatamente como estão. É claro que é do interesse dos grupos políticos dominantes tribunais de contas inertes. Já à sociedade brasileira interessa um controle externo eficiente.
Este movimento, portanto, embora iniciado por entidades de servidores e procuradores, não é e não pode ser apenas nosso. Tem de pertencer a todo cidadão brasileiro que sonha com um país justo, com saúde e educação de qualidade, com gasto público eficiente. Nós podemos apenas emprestar nossa firme vontade e nossa experiência de décadas de serviço público dedicadas a tentar construir instituições de controle externo que funcionem. Juntos, conseguiremos.
*Júlio Marcelo de Oliveira é presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon)