Parecer do Ministério Público de Contas destaca a existência de diversos vícios em estudo terceirizado realizado a pedido da ARSP que o tornam inválido; trabalho foi elaborado para cumprir determinação feita em 2019 no processo que trata de auditoria no contrato de concessão firmado pelo Estado com a Concessionária Rodovia do Sol (Rodosol) e inverteu crédito estimado em R$ 613 milhões a favor do Estado em dívida com a Rodosol
O Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES) emitiu parecer no processo que trata da auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) no contrato de concessão da Rodovia do Sol, no qual pede a anulação do estudo técnico que estimou em R$ 351 milhões (valor atualizado até 2023) indenização a ser paga à Concessionária Rodovia do Sol S.A. (Rodosol), como saldo do Contrato 01/1998. O órgão ministerial aponta diversos vícios no estudo terceirizado, como ausência de identificação dos responsáveis pela sua realização, sigilo ilegal dos documentos e metodologia negociada entre a agência reguladora e os grupos econômicos que integram a concessionária.
O parecer ministerial foi emitido na fase de monitoramento do Processo 5591/2013, julgado pelo TCE-ES em 2019, quando foram reconhecidas 12 irregularidades na concessão. A decisão da Corte de Contas (Acórdão 01450/2019-3) desconsiderou o cálculo feito pela equipe de auditores, que apontou um crédito de R$ 613 milhões a favor do Estado do Espírito Santo, e determinou à Agência de Regulação de Serviços Públicos do Espírito Santo (ARSP) que fizesse a análise do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, entre outros pontos.
A partir dessa determinação, a ARSP contratou a Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos (Coppetec), entidade privada de apoio técnico e científico conveniada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para atuar como consultora na definição da metodologia para elaboração de novos cálculos. A contratação foi feita sem licitação, no valor de R$ 1,3 milhão.
No parecer, o MPC-ES sustenta que o estudo é absolutamente nulo em razão de graves vícios que comprometem sua legalidade e a transparência do processo, e reforça questionamento sobre a delegação de atividade do Tribunal de Contas em afronta à Constituição Federal. Ele conclui que o conjunto de irregularidades – terceirização indevida de prerrogativas do TCE-ES, estudo anônimo, negociações diretas com a concessionária e sigilo injustificado – representa violação grave aos princípios da moralidade, da publicidade e da indisponibilidade do interesse público, além de caracterizar “inequívoco conflito de interesses”.
Estudo anônimo
O principal argumento do MPC-ES é a nulidade absoluta do estudo por sua natureza “apócrifa”, por ausência de identificação de autoria. O trabalho foi apresentado pela ARSP ao TCE-ES no final de 2023, depois de diversos pedidos de prorrogação de prazo para cumprir a determinação, sem a assinatura dos pesquisadores responsáveis, ou seja, como um estudo anônimo.
Os cálculos apresentados foram atualizados pela ARSP, resultando no crédito de R$ 351 milhões em favor da Rodosol. Porém, o trabalho não possui a identificação e as assinaturas dos pesquisadores da entidade privada conveniada à UFRJ que o elaboraram.
A ausência de autoria invalida o estudo, na avaliação do MPC-ES, uma vez que o trabalho científico exige identificação para verificar a qualificação técnica dos autores, seus possíveis vínculos e eventuais conflitos de interesse. A ausência de autoria e autenticidade impede a validação científica rigorosa e a responsabilização técnica pelo conteúdo, invalidando o estudo e todos os atos decorrentes dele.
O parecer relembra que o cálculo anterior, descartado no julgamento do TCE-ES, foi elaborado a partir da atuação de 18 auditores de controle externo, em mais de 2 mil horas de trabalho de análise técnica, sendo que todos eles foram devidamente identificados.
Ora, não se faz ciência sob o manto do anonimato, notadamente quando o resultado do trabalho supostamente científico, produzido em um balcão de negociações, no qual foi posto em jogo o interesse público do povo capixaba, pretende desconstituir o trabalho realizado por 18 Auditores de Controle Externo, em mais de 2000 horas de trabalho, gerando um prejuízo para a sociedade do Estado do Espírito Santo no valor calculado de aproximadamente R$ 351 milhões. (Trecho do Parecer do Ministério Público de Contas 06317/2025-1)
Para o MPC-ES, qualquer tentativa posterior de atribuir autoria ao estudo configuraria vício irreversível, comprometendo sua validade técnica, ética e jurídica. Entre os pontos que justificam esse entendimento estão: o fato de que a autoria científica não pode ser construída de forma retroativa; a impossibilidade de se aferir retrospectivamente a efetiva participação intelectual dos pesquisadores indicados; a contaminação de todo o processo provocada pela ausência original de identificação dos autores, impedindo o exercício do contraditório; a insegurança jurídica gerada pela identificação posterior de autores para documento usado para embasar decisões administrativas e técnicas; e a suspeita lançada sobre a origem e a autenticidade do estudo, tendo em vista que a ausência de assinaturas sugere a recusa dos pesquisadores a assinarem o documento, seja por não concordarem com o seu teor ou por não terem sido os verdadeiros responsáveis pela sua produção.
Devido à gravidade dos fatos, o órgão ministerial pede ao TCE-ES que notifique a ARSP e a UFRJ para que prestem esclarecimentos quanto à ausência de identificação e assinaturas do trabalho supostamente elaborado por sua fundação de apoio, a Coppetec, e pelo Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG), instituição vinculada à UFRJ desprovida de personalidade jurídica. Também requer a realização de perícia técnica para confirmar a autoria e autenticidade do estudo, com acesso integral às bases de dados, planilhas e registros das reuniões que envolveram a elaboração do material.
Por envolver uma instituição federal, o MPC-ES pede o envio de cópia dos documentos aos órgãos federais de controle — Tribunal de Contas da União (TCU), Controladoria-Geral da União (CGU), Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF) — para conhecimento e apuração de eventuais responsabilidades.
Metodologia negociada
O Ministério Público de Contas aponta que a metodologia de cálculo usada para chegar à dívida de R$ 351 milhões do Estado com a Rodosol não foi fruto de um estudo técnico independente, mas de um processo negocial. A forma de cálculo, que deveria orientar a fiscalização do TCE-ES, foi definida em negociações diretas entre a ARSP e os grupos econômicos controladores da Concessionária Rodosol — Coimex, Tervap-Pitanga, A. Madeira e Urbesa-Arariboia.
A Fundação Coppetec/UFRJ, contratada para definir a metodologia, na verdade atuou como mediadora ou facilitadora de entendimentos entre o órgão fiscalizador (ARSP) e o fiscalizado (Rodosol). O próprio documento elaborado pela entidade traz em sua descrição “apoio técnico especializado ao Poder concedente e à ARSP nas negociações com a concessionária”.
Para o MPC-ES, essa situação pode ser classificada como um “balcão de negócios” sobre o interesse público, subvertendo a lógica do controle regulatório e afrontando os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.
A descrição minuciosa do processo irregular ora analisado — negociações diretas entre ARSP e Concessionária sobre metodologia de cálculo, interpretação contratual e quantificação de desequilíbrios, mediadas por fundação privada contratada por R$ 1,3 milhão — permite identificar, com nitidez preocupante, a ocorrência de fenômeno que a literatura especializada em regulação de serviços públicos denomina “captura regulatória“. (Trecho do Parecer do Ministério Público de Contas 06317/2025-1)
Diante disso, o parecer considera que o documento denominado Produto Final 3, elaborado e entregue pela Fundação Coppetec/UFRJ, não foi produzido segundo critérios científicos compatíveis com o rigor acadêmico de uma universidade pública, mas resultou de um processo de negociação voltado à conciliação de interesses econômicos opostos entre o órgão regulador e a concessionária.
Terceirização de prerrogativa constitucional
O MPC-ES destaca que o Estado transferiu para a Fundação Coppetec/UFRJ, uma entidade privada, a responsabilidade de desenvolver o método de cálculo do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, sendo essa uma atribuição constitucional do Tribunal de Contas, caracterizando uma terceirização indevida de uma função essencial do controle externo.
O parecer ministerial ressalta que o problema vai além da contratação, focando na essência da delegação: a Coppetec/UFRJ assumiu um papel central na elaboração de uma metodologia que deveria estar sob a supervisão direta e domínio técnico do controle externo, e não ser mediada por uma entidade privada.
Embora se apresente como instituição sem fins lucrativos, a fundação atua como intermediária de projetos públicos e privados de grande porte, movimentando valores milionários e mantendo uma extensa carteira de clientes, incluindo grandes estatais e governos. Para o MPC-ES, essa prática ignora as competências intransferíveis do TCE-ES e compromete a lisura e a legitimidade dos resultados obtidos.
Assim, o parecer reforça que a função fiscalizatória do Tribunal de Contas não pode ser transferida e a definição da metodologia de cálculo deve permanecer exclusivamente sob o domínio técnico do controle externo.
Como medida corretiva, o MPC-ES propõe que a UFRJ apure internamente a atuação de sua fundação de apoio e revise seus mecanismos de supervisão. Adicionalmente, recomenda que os órgãos de controle federais e estaduais investiguem a eventual violação aos princípios de integridade acadêmica e responsabilidade institucional, visando impedir novas distorções que possam afetar de forma indevida os cofres públicos.
Sigilo ilegal
O parecer também questiona o sigilo imposto pela ARSP aos cálculos. A Agência de Regulação ocultou da sociedade a metodologia que resultou na suposta dívida com a Rodosol.
Na avaliação do MPC-ES, o sigilo sobre cálculos que beneficiam exclusivamente os grupos econômicos viola o direito constitucional de acesso à informação e perpetua a “captura regulatória”. O órgão pede a derrubada imediata do sigilo sobre o “Produto Final 3” e os cálculos de atualização.
Pedidos
Diante da sistemática violação aos princípios constitucionais da administração público, o MPC-ES requer a declaração de nulidade do estudo denominado “Produto Final 3” e de todos os atos administrativos dele decorrentes. Por consequência, que o Estado do Espírito Santo seja impedido de realizar quaisquer pagamentos à Concessionária Rodosol com base nos cálculos fundamentados no documento contestado.
O parecer do Ministério Público de Contas também pede o fim do sigilo sobre o estudo realizado pela Coppetec/UFRJ e sobre os cálculos elaborados pela ARSP, garantindo sua ampla divulgação às partes, aos órgãos de controle, à comunidade científica e à sociedade.
O órgão ministerial pede ainda a apresentação integral dos documentos relativos ao Contrato 01/2020, celebrado pela ARSP com a Fundação Coppetec/UFRJ, bem como a instauração de um novo processo de fiscalização separado para apurar a legalidade da contratação, devido aos indícios de irregularidade e de possível dano aos cofres públicos no valor de R$ 1,3 milhão.
Para assegurar análise técnica completa e independente, o MPC-ES sugere a formação de nova equipe multidisciplinar de auditores do TCE-ES para analisar a metodologia aplicada no contrato de concessão. Sugere, ainda, a suspensão temporária do monitoramento no Processo 5591/2013, até que seja esclarecida a omissão dos nomes dos pesquisadores responsáveis pelo estudo anônimo.
Por fim, o parecer recomenda a notificação da ARSP e da UFRJ para esclarecimentos formais sobre o estudo, o envio do caso ao TCU, CGU, MPF e PF (órgãos federais de controle), bem como à Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont), ao Ministério Público Estadual (MPES) e à Assembleia Legislativa (Ales), para que adotem as providências cabíveis em suas respectivas esferas de atuação.
Histórico do processo
O Processo TC 5591/2013 teve início com representação apresentada em julho de 2013 pelo governo do Estado, MPES e a Agência Reguladora de Saneamento Básico e Infraestrutura Viária do Espírito Santo (Arsi), antecessora da ARSP, e posteriormente aditada pelo MPC-ES e pela Assembleia Legislativa. Ela foi proposta no contexto das manifestações populares de 2013, com o pedido de realização de auditoria pelo Tribunal de Contas a fim de esclarecer as condições de exploração do pedágio da Terceira Ponte e do Sistema Rodovia do Sol.

Pedágio da Terceira Ponte durante a vigência do Contrato de Concessão 01/1998 | Foto: Twitter Rodosol
O primeiro passo foi a realização da auditoria, cujo relatório apontou diversas irregularidades na concessão. Após a tramitação regular, com elaboração de manifestações técnicas, apresentação de defesa pelos responsáveis e elaboração de parecer do MPC-ES, o caso ficou parado por mais de um ano aguardando julgamento de questionamento da concessionária sobre a participação do então relator, conselheiro Carlos Ranna.
O julgamento do caso foi iniciado em 2017, ainda sob a relatoria de Ranna, mas decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) o considerou impedido de atuar no processo. Com isso, ele foi redistribuído para a conselheira-substituta Márcia Jaccoud Freitas, que desde então passou a relatar o caso.
O processo foi julgado em 2019 e resultou no Acórdão 01450/2019-3, o qual se tornou definitivo em fevereiro de 2020. Nele, o Plenário do TCE-ES determinou à ARSP a elaboração de dois planos de ação: um para análise do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, estabelecendo parâmetros e diretrizes a serem observados, e outro para fiscalização do contrato de concessão, encerrado no final de 2023. Com o fim do contrato, o governo do Estado assumiu a gestão da Terceira Ponte e da Rodovia do Sol (ES-060) e pôs fim à cobrança de pedágio nos dois lugares.
Para cumprir a primeira determinação, a ARSP reconheceu não dispor de equipe técnica especializada e contratou a Fundação Coppetec/UFRJ para fazer a análise do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Em 2023, a entidade concluiu o estudo que indicou desequilíbrio do contrato em favor da Concessionária Rodosol no valor de R$ 155 milhões, o qual passou para R$ 351 milhões, por meio de atualização promovida pela ARSP, com data-base em 2023.
Desde 2020, o processo encontra-se na fase de monitoramento, etapa em que devem ser cumpridas as determinações estabelecidas no julgamento. Nesse caso, o cumprimento das determinações passa pela análise do Tribunal de Contas quanto à sua validade, regularidade e conformidade com os comandos do Acórdão 1450/2019-3.
Após a ARSP enviar o estudo realizado pela Fundação Coppetec/UFRJ, para cumprir a determinação do TCE-ES, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) apresentou requerimento questionando a metodologia do cálculo. Depois de análise técnica, ministerial e manifestação por parte da concessionária a respeito dos pontos apresentados pela PGE, o processo voltou a ser analisado pela equipe técnica e agora pelo MPC-ES, incluindo a avaliação sobre a regularidade do estudo apresentado pela Agência de Regulação para cumprimento da determinação da Corte de Contas.
No último dia 11, o processo foi encaminhado ao gabinete da relatora. Ainda não há data definida para o caso ser novamente levado a julgamento pelo Plenário.
Confira na íntegra o Parecer do MPC-ES no Processo 5591/2013
Veja os demais documentos do Processo TC 5591/2013
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